De como viveria em Campo de Ourique




viver na cidade estava muito longe de um sonho. sempre preferi as terras que não eram isso nem aldeias, nem vilas, nem nada que se pareça. qualquer coisa intermédia talvez. um sitio bonito que tivesse uma ou mais paisagens que nunca se repetissem. algo que ao abrir a janela de manhã fosse sempre novo.

um dia abria a janela e a primavera. no outro, a mesma janela, a mesma primavera mas com flores de outro futuro. 

procurei moradas por toda a parte. nenhuma sabia ser novidade. todas as moradas são iguais, com músicas diferentes, com pessoas diferentes. nenhuma das moradas que procurei tinha o horizonte que existe entre a primavera e o verão e o inverno e a o outuno.

certa noite descobri Campo de Ourique e uma buganvília. 

sentei-me numa esplanada e o nome de um escritor. entre prédios de uma cidade, um jardim parado no tempo. pedi uma água e fumei um cigarro. tinha uma cadeira vazia e muitas pessoas à volta. tentava falar com as pessoas com a observação de quem sabe que surgirá uma ideia a qualquer momento. fazia o exercício próprio de quem tem nos livros um amigo. roubava o cabelo do rapaz que se sentava a fugir da mesa. assaltava de mãos armadas de bandido a face rosada de uma inglesa que suspirava por palavras em português. invadia o espaço invisível de dois adolescentes que se queriam beijar mas que perdidos na teimosia e na timidez. 

acabei a garrafa de água e pousei a caneta das ideias. ao acender novamente um cigarro apaixonei-me. sem mais nem menos, apaixonei-me. tive consciência que me apaixonava por Campo de Ourique. nada sabia do lugar. ouvira coisas importantes das revistas que falavam das cidades bonitas como Lisboa. eu que crescera em autocarros presos no transito da cidade. que me enervava sempre que à cidade tinha de ir. 

sentado na esplanada, parado, com o eco de Teófilo Braga, a suspirar por uma buganvília. uma flor que tinha pernas de jardim e braços como pétalas que nunca dizem adeus. a buganvília prendia-se em outras árvores e voava até à minha mesa. como se fizesse parte do vento, pintava as paredes dos prédios pobres e as pessoas não reparavam. chegava a deixar palavras escritas nos muros antigos:

"um Homem, quando sensível, escreve porque não sabe fazer mais nada."

"o tempo engana-se quando nos oferece a oportunidade de sermos a diferença do que não éramos ontem."

"preferia assim. dizer o nome seria morrer. os poetas não sabem morrer. nunca souberam. vivem constantemente nas escadas dos amantes. nos parapeitos dos amantes. nas cartas dos amantes rejeitados. os poetas não sabem morrer."

os poemas escritos enquanto a buganvília se aproximava de mim. até chegar tão perto que a cadeira deixou de estar vazia.

apresentou-se. não se chamava buganvília. não tinha nome de flor. a mesma ternura de um jardim. ainda mais bonita. sentou-se com a leveza de quem descansa para sempre. roubou-me a caneta e escreveu na mesa:

"adormecia debaixo de uma ponte sem portagem e acordava no rés do chão da noite. nunca sonhava porque alguém o coordenava de outros sonhos em multiplicação. numa manhã igual às noites, cansou-se e deixou de acordar."

ficámos sem palavras quando decidimos que teríamos de viver muitas vidas para compensar o tempo perdido longe um do outro. mas mesmo sem nada nas vozes, tivemos força para ficarmos no jardim, junto às buganvílias, junto às paredes com os poemas, junto a todos os dias que nunca haveriam de terminar.

e mudei-me para Campo de Ourique.

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