O futebol da nossa rua




nos anos noventa, quando jogar futebol começava com quatro pedras e a vontade de quem sonhava, encontrei na televisão do centro comercial o futebol italiano.

passeava com o meu primo. simulávamos qualquer coisa com os pés. imaginávamos a bola do Itália 90, chamava-se Etrusco. era uma bola bonita que custava muitos mil escudos. por ser tão cara, por ser feita por mãos de romano, por ser pisada pelos melhores do mundo, só a poderíamos imaginar.
portanto, no centro comercial, a imaginar campos de futebol, com balizas à entrada das lojas, descobrimos, na loja das televisões do futuro, o campeonato italiano. o calcio.

era o jogo entre a juventus de turim e o milan de milão. 

de um lado a frente de ataque escolhida pelos deuses: vialli, ravanelli, roberto baggio e del piero. quatro anjos a voar pela relva, como se os deuses vivessem no futebol e pudessem brotar romances.

do outro lado, o cinismo de capello. a arte contemporanea de boban e savicevic. o estilo exótico de ruud gullit e o nervo de marco simone.

o calcio a rebentar pelas costuras de tanta qualidade. senhores do futebol. uma inteligência devastadora.

eu e o meu primo a olharmos para as televisões do futuro e a dizer-mos em silencio que haveríamos de pisar aquela relva:

- puto, eu ainda vou pedir a camisola ao baggio. disse eu.

- puto, o maldini ainda me vai pedir uma camisola. disse o meu primo.

as outras pessoas que assistiam a jogo, ouviam os disparates das nossas vozes e tossiam para nos calarem.

não demorou muito para que o menino querido da velha senhora começasse o espectáculo. para rejubilo das bancadas que gritavam e traziam o eco até Lisboa nossa. 

"del piero contorna baresi. enfrenta tassotti que faz cara feia. albertini pode roubar a bola de carrinho mas prefere ficar de pé e não deixar a classe. del piero está fora dele e com o olhar desvia do seu caminho o gigante desailly e o elegante costacurta. del piero. del piero. del piero. apenas rossi à sua frente. .."

não foi golo, mas foi espectáculo.

aquele lance bastou para que o futebol nasce-se naquele preciso momento dentro de mim. não foram os milhões de contos. o vedetismo. os golos. o porto ou o benfica ou o sporting. foi ainda melhor do que isso. foi o del piero. foi a juventus. foi o milan. foi a frase do meu primo, que ecoa ainda na minha imaginação:

- puto, quando me tornar o melhor jogador do mundo, voltarei sempre à nossa rua para as partidas de bairro.

ele a dizer aquilo e eu a ver o meu corpo vestido com a camisola da juventus. a entrar pelo bairro de calções e camisola da velha senhora, a juntar quatro pedras para marcar as balizas, a convidar o meu primo e o resto da malta e o del piero para uma partida que haveria de durar a vida inteira.

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