A nossa mesa e a eternidade



Regresso a essa tarde antiga em Miguel de Choco. 

(as fotografias são viagens para um tempo estático que vive dentro. O que lembro hoje nunca é igual ao que me lembrava ontem.)

Encontro um menino de perfil, a esconder os olhos no chão, completamente distraído da história que será escrita depois daquela fotografia. Um rapaz que outrora tímido, ausente dos outros porque os outros não lhe interessavam. A escolher brincar com os velhos porque a eles o tempo respeitava.
Do outro lado da fotografia, sem que me lembre, as mãos da minha mãe a pintarem uma educação sem passado. Criativa do futuro que inventava desde muito cedo as raízes por onde as fábulas nascem. Naquele momento a esticar a longevidade da vida para muito longe e a sorrir como no dia em que a luz inteira por entre as pernas.

(a minha mãe muito nova, muito bonita, muito mãe.)

Mas ali estava o menino de perfil, em Miguel de Choco, aldeia rebuscada de Trancoso. Um lugar que a história rapidamente esqueceu porque o mapa demasiado pequeno para terras tão distantes e sossegadas. Mas nunca para o menino, quase rapaz, que sempre se distanciara do barulho dos outros, da insensibilidade dos outros. 

(as fotografias marcam o ritmo musical da vida.)

O olhar, ainda que de perfil, tem uma solidão de castidade. Uma quase candidez que num divórcio perpétuo com a maldade, permite aguentar a rigidez da memória curta. 

(temos o mesmo olhar, a idade nunca importará.)

Naquela tarde em Miguel de Choco, o menino que acordara cedo para conversar pela matina com o tio. Uma conversa de silêncios oportunos. Coisas da vida que o tio explicava ao menino, quase rapaz. Os cartuxos de caçadeira, vazios, à espera de pólvora para terem um alvo, um disparo, um crime. Explicações breves sobre a liderança da natureza e o propósito da morte. Conversas tão pequenas como o som. Palavras sem inteligência porque não existe. 

(entre a infância e a velhice, a nostalgia é uma forma de encontro.)

- Morremos no dia em que nos apaixonamos por uma recordação. 

Frases curtas no discurso sem preparação do tio. Poucas palavras sempre chegaram para explicar os segredos do universo. Caímos porque a gravidade. Respiramos porque o ar. Comunicamos porque o som. Beijamos porque um desejo imenso.
Foi naquela tarde que ambos descobriram a amizade. O verdadeiro sentido da palavra: amizade. Sem a explicação de que têm pontos em comum ou interesses semelhantes. Apenas o desdobrar em outro mundo em que os amigos. 

- Somos amigos porque a idade não nos importa. 

Nem sequer se tratavam pelo nome. Havia um chamamento qualquer diferente dos nomes, uma outra coisa mais natural, mais primitiva, em que os passos andavam pela mesma linha, como se o horizonte diferente mas o caminho igual. Até os cães que os acompanhavam ausentavam-se de nomes próprios. Quando saíam juntos para uma caça a fingir, porque os cartuchos vazios e o gatilho encolhido, eram os braços e as pernas da natureza confundidos com animais. 

- Não há dia em que não chore depois de carregar a caçadeira. Tenho a viver no meu coração todos os animais que matei. E é de noite, mais quando faz frio, que os ouço chorar por cima do ombro. E às vezes é a minha mãe que chora com eles, quando o meu avô desligou a luz da casa na serra e se enforcou.

(o meu tio sabia mais de filosofia que os livros que se escreveram sem o seu nome.)

Como tudo pode ser bonito agora que uma fotografia fixou aquele dia. O mesmo Eu que pensava pequeno na altura, pensa pequeno ainda agora. Nada se alterou. E no entanto, mesmo hoje, depois de tanto tempo passado, ainda ouço o meu tio.

- Onde paras tu senhor Bernardo, que foste o meu amigo naqueles dias em que me expliquei. Onde paras tu senhor Bernardo que me visitaste apenas naqueles dias. Sabes que ainda guardo a fisga que construí para ti? E a tua espingarda ainda está na minha casa de sucatas, junto com os cartuchos vazios que apanhámos na serra. Onde paras tu senhor Bernardo, que eras tão pequeno e franzino que tive medo do vento nas tuas costas? Sabes que podes sempre regressar, desde que não faças como eu: não envelheças.

Volto a guardar a fotografia na caixa. Relembro uma última vez aquela tarde em Miguel de Choco. Vejo o tempo a envelhecer nas fotografias que se escondem agora entre tantas. O meu tio morreu há algum tempo. Não chegou a despedir-se de ninguém. Foi-se despedindo das pessoas durante o tempo em que esteve por cá. E foi no dia em que faleceu que eu percebi que a eternidade não tem lugar à nossa mesa.

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