No teu amor por mim



“No teu amor por mim, há uma rua que começa”
Ruy Belo

        Entre o vento e a noite que assombra a janela do meu quarto, existe a mesma esquina revirada que te descobriu. Sei que como o poema de Ruy Belo, tu começaste naquela esquina revirada. Fizeste uma valsa com as tuas curtas pernas e desde aí me surgiste esplendorosa. E eu cedi. Eu tinha de ceder.
        Curiosa a forma discreta como sem te olhar vi o redor dos teus olhos pintados a um negrume de nostalgia. És e foste todo um caminho que me complementa nessa noite desvairada.
        Saio do meu quarto abismal. Não suporto o vazio destas paredes brancas, deste chão de raspão. Saio descalço, num frio que me enregela mas que permite o teu aproximar. As folhas caem e com elas os troncos despidos. Fazem um ruído de tremor. Um barulho que parece musical, um estrondo que enfurece a rua.
        Pareces ter tornado um susto uma fuga. Abandonas a nossa rua e partes com a tremenda atitude das pernas. Balanças o corpo para uma distância sem braços. Mas eu sou mais forte que uma natureza estruturada. Eu sou grandioso quando penso em ti. Fulmino as ruas e os passeios e estico os dedos para te segurar, prender, embalar. Consigo-te.
        Estamos com os rostos perto. Somos quase um beijo de Climt. Somos os próprios pincéis do pintor. Os nossos lábios são volumes de um beijo por se dar. Estamos de frente e os teus olhos são um reflexo de todo o meu amor por ti. Não pestanejo, não embargo os olhos, não quero perder a tua pele ou os teus pequenos traços que marcam uma história que começou há um longo tempo atrás. O meu braço move-se calmamente para subir o teu braço. Não me permites chamar pelo teu nome, perde o encanto dizes tu. Mas já são meus os teus braços, prendo-os, suspendo-os, comprovo-os. Estou preparado para te beijar até amanhã. Molhando o lábio superior sei que terás um sabor curioso. Quero tanto beijar-te.
        O universal movimento da terra e do espaço e do universo é pequeno para o que podemos fazer naquele momento. Os relógios da cidade param para nos ver, os céus querem antecipar o que nós nunca previmos. Vai acontecer. Nós vamos acontecer.
        Eu estou descalço e sei que o teu corpo é a minha decisão. Eu tenho as calças de ganga rasgadas nos joelhos e sei que nunca precisarei de mais nada. Tenho os poros do meu interior a fervilhar e sei que um beijo mudará o que outrora era impossível.
        Os meus braços ajudam as minhas mãos a chegar ao teu rosto. Decoro o caminho dos teus ossos até aos teus lábios. É uma estrada curta. É imensa a tua finitude. Tenho de ousar o teu beijar.
        Mas tu baixas o olhar o queixo os olhos as maças do rosto, a testa franze, o cabelo esfuma-se, a tua cor já não me chama. Toda a tua inocência se perde com a verdade de não poderes ser minha. És uma fuga que querias fazer e deslizas por entre os meus dedos inebriados. Perco-te. Estou a perder-te porque a noite está a terminar. A noite flui e tu vais andar para trás, para quem te pertence. O teu olhar cai sobre a minha tristeza.
        Estou novamente só.
        Estou descalço no meio de uma rua que acolhe o meu sonambulismo. Perco a noção do tempo e percebo o que tardo em entender. Tu foste minha por fracções. Calculei-te para a eternidade sem suspeitar que a rua que podia começar o nosso amor, se perdeu.   
        Regresso a casa e vejo espalhadas pelas paredes da rua as palavras que te queria dizer

“Eu vi a luz num país perdido.”
Camilo Pessanha   


“Dá-me uma mão a mim e a outra tudo o que existe.”
Alberto Caeiro


“Entre nós e as palavras há portas por abrir.”
Cesariny


        São quase pinturas. As paredes são quase um beijo de Gustav Climt. As letras escritas nas paredes são o meu amor por ti e o que clamo para que fiques ao meu lado, como amantes, como sombras que envelhecem juntas.

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