Na aldeia lá do lugar




os meninos eram salteadores. a temporada de fome a ordem natural de roubar. mercearias vazias de cestos. e os merceeiros a gritarem perante os ladrões de fruta invisível. 

as mesmas mãos que fingiam roubar, fingiam a casca e o cheiro de laranjas, de mangas, de frutas que apenas ouviram do contador de histórias que parava anualmente na aldeia lá do lugar. o contador de histórias que vinha sempre mascarado de qualquer coisa. apenas mascarado porque a imaginação dos meninos chegava sempre mais longe do que as palavras.

por vezes o contador de histórias falava de moinhos e de pão. e os meninos, outrora salteadores, eram somente crianças sentadas e atentas, a cavarem fundo para encontrarem uma imagem-moinho, uma imagem-pão.

o contador de histórias fazia movimentos redondos com os braços para explicar o moinho que se movia pelo vento. e mesmo assim os meninos de caras absurdas, desconhecidas de tamanha máquina. 

o contador de histórias a fechar as mãos para explicar o pão e a textura. num fingir que não se finge. de mãos fechadas a saborear o pão que do outro lado do mundo terminava com a fome. o mesmo pão que outras crianças deixavam endurecer. a mesma textura que os homens do outro lado do mundo, os trabalhadores camuflados de farinha, a contarem as quantidades e a não duvidarem da distribuição certa por todos os meninos.

na sala de aula, o chão de terra quente, os chinelos de garrafas coloridas, as unhas roídas, impróprias, dedos doentes. os meninos atentos, concentrados. 

alguns adultos desempregados também em volta, a formarem uma roda de mais idade. dois círculos, de meninos e de adultos. várias gerações de muita fome. a dura expressão dos adultos que desconheciam o sabor aquecido do pão. a pensarem no moinho como uma máquina importada pelos grandes senhores da guerra. a imaginarem metralhadoras de pão. balas-pão a saírem dos canudos. semi automáticas que sabiam desmontar e montar em segundos. armas de guerra que matavam as pessoas e a fome. 

- os mortos não têm fome. 

o contador de histórias queria ser o mais perfeito possível. todo ele um livro inteiro. como se no corpo coubessem cenários. como se o movimento do corpo pudesse transformar-se em fábricas, brinquedos, carros, arranha-céus. 

- o corpo é capaz de tudo.

todos os anos a mesma caminhada. o contador de histórias chegava sempre no inicio da primavera. e os meninos que nunca perguntavam o que era a primavera. ele chegava desmontado, o corpo quase por peças. o corpo-livro. o corpo-história. 

a aldeia lá do lugar sabia sempre que ele haveria de chegar. era perceptível nos saltos dos meninos. era perceptível nas grávidas que deixavam de chorar. era perceptível na fome que desaparecia. era inicio de primavera. ainda que na aldeia lá do lugar nunca houvesse primavera ou inverno. havia frio e calor. havia chuva e sol. havia fome.

porque era primavera, o contador de histórias trazia sempre uma flor. conservada. impávida. debaixo do casaco a flor guardada. de todas as especies. todos os anos uma flor nova que depois ficava. era o adulto mais velho que a guardava. debaixo de terra. na esperança de que um dia a terra se erguesse toda do interior e brotasse um jardim de cores que haviam apenas ouvido o nome. um jardim que trouxesse consigo as frutas que encheriam os cestos vazios. as mais simples frutas que os meninos poderiam assaltar. 

todos os anos, na despedida do contador de histórias, os adultos choravam. os meninos acudiam as lágrimas dos adultos e diziam que decoravam as histórias para contarem durante a noite aos adultos, que o corpo pequeno também haveria de imitar o moinho, os arranha céus, as fábricas, os brinquedos, os carros.

e os adultos continuavam a chorar. porque os adultos sabiam que o jardim demoraria. que a fome. que os meninos sempre meninos. que a morte puxava os meninos. para o outro lado do mundo a importância era pequena. 

no aceno do contador de histórias, os meninos imitavam as formas todas do mundo. os meninos imitavam máquinas para fugirem. os meninos a imitarem aviões sem saber o quê . os meninos a voarem para a terra onde os senhores da guerra morreriam. a sobrevoarem as mercearias do mundo para roubarem laranjas, mangas. os meninos de coração-universo a serem as memórias do contador de histórias que levaria tudo aquilo para a cidade onde os seus filhos se comoveriam e transformariam a realidade dos que nunca sonham para lá do que existe.

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