Livros e Revolução



Uma multidão de algumas pessoas aguardava sentada nos bancos, numa sala recôndita de uma livraria feita alfarrabista. Estavam num silêncio de morte, como que a aguardar a chegada de alguém mais barulhento. Ao canto da sala uma alma penada tocava um piano em harmonia. Numa das extremidades, pousavam o pó e alguns livros. A janela contava os resquícios de gordura, dedos marcados e até algumas garatujas desenhadas. De um lado para o outro, um catedrático caminhava sem rumo, remexendo a barba de prestígio e gesticulando em movimentos de inteligência. Mas era o enfado que reinava naquele cubículo. Alguém esperava alguém. Alguns esperavam alguém.
        Olhei para o relógio, marcava agora a hora combinada previamente com o senhor catedrático, Saraiva. Avancei para a sala de gente. Examinei cada rosto sentado, não encontrei o que esperava. Sentei-me no lugar menos poeirento, talvez fosse o lugar do senhor Saraiva.
        Voltei a controlar os ponteiros do relógio. Em cada movimento dos traços a marcar a hora, vi os meus anos a subires. Toquei na minha pele de adulto em fase de prolongamento, lembrei que tinha agora menos cabelo. Invadido pela calvície que me roubara a juventude, soprado pelo grisalho de alguns cabelos, eis que era eu, na meia-idade com uma réstia do que tinha sido quando escrevera tamanhas palavras.
        Coloquei o livro à minha frente, ofereci o título a quem estava sentado à minha frente. Podia ler-se Um Trago de Palavras. Era o nome do meu primeiro livro, mesmo ali, deitado sobre a mesa coberta de musgo, coberta de tempo.
        Disse boa tarde.
        Ouvi responder. Boa Tarde senhor Tomé.
        Pedi para excluírem o senhor, pedi para me tratarem pelo meu primeiro nome. Assim o fizeram daí em diante.
        Viria agora um sem número de perguntas que eu transformava em conversas. Deliciava-me ouvir as interpretações dos leitores, dos críticos, dos intelectuais e sobretudo do mais humilde, do verdadeiro apreciador, do romântico que lê por saudade.
        Os críticos, rasgavam a literatura ao meio e de forma singela ou arrasadora, recriavam um novo livro, com formatações de quem lê mas não ama.
        Os intelectuais, esses, pincelavam as minhas palavras e comparavam, diziam ser uma cópia exacta de tantos outros autores. Retiravam o sentido simplista e objectivo da minha escrita, colocando-o no patamar de quem nunca soube escrever e se resume a umas historietas de banalidades suaves.
        Nem vontade tinha de me rir. Ficava triste com a crítica, com a intelectualidade. Sabia a razão pela qual tinha escrito, continuava sem entender porque tinham publicado, porque quiseram publicar. Ficava triste. Eu estava triste. Um livro como aquele não tinha sido escrito para ser avaliado, corrigido, posto em causa, nada disso. O livro era um livro, apenas isso. A razão estava comigo. Eu nunca quis revelar a razão.
        Mas nos lugares mais escondidos da sala, estavam os leitores que eu gostava de ter. Os que conversavam, os que tinham as perguntas interessantes, os que tinham percebido o intuito, os que sabiam que a literatura não está em quem a julga, antes, em quem a sente verdadeiramente, quem a respeita.
        Não foi de estranhar que o teu nome surgisse na conversa. O mais silencioso dos leitores soltou o teu nome entre a poeira. Por duas vezes disse o teu nome, curto, minúsculo, grandioso. Disse o teu nome e a minha expressão mudou. Ao ver-me desarmado, não disse mais nenhuma vez o teu nome, não usou o I, nem o S, nem o A. Calou-se como todos os que estavam sentados. Até o senhor catedrático ficou estagnado na sua movimentação. A janela fez notar o barulho do vento lá fora. Eu mudava de expressão e o livro continuava na minha frente.
        Pousei as mãos sobre o cadeirão, ajeitei a camisa que se preparava para saltar fora das calças, massajei a barba de alguns dias, tal como fazia na minha juventude, tal qual fazia sempre que ouvia o teu nome.
       
        Alguém interrompeu as minhas últimas palavras. A sala numa espiral de emoção levantou-se. O jovem que entrava aos gritos dentro da sala da livraria era um jovem revolucionário, era um jovem estampado com a cara de Vladimir Ulianov, era um jovem marxista, era um jovem de lutas, era um jovem comunista. Gritava alto, directamente das entranhas da sua voz:
        - Iniciou-se a revolução. Eles não nos oprimem mais. O PCP está na rua e as gentes gritam como eu. Vamos. Vamos para a rua ter com o partido, ter com a revolução, ter com as massas, vamos fazer das nossas vozes as vozes de todos nós. PCP. PCP. PCP.
        Delicadamente, perguntei ao jovem quem deu início à marcha.
        - Foi o Gonçalo. Foi o Gonçalo. Foi o Secretário-geral Gonçalo. E ele gritava tão alto o nome do Cunhal que parecia que estava a entoar o nome de todos os camaradas do nosso partido. E olha que entre tantas vezes que ouvi o nome do Álvaro, pareceu-me que o camarada Vasco Gonçalves também ecoava na voz do Tomé. Vamos camaradas. Vamos, não há tempo a perder.
       
        Deixei todos saírem. Os intelectuais que de repente já eram meus camaradas, os críticos que me pareciam agora os barbudos de Havana, e os simples leitores que sempre soubera que eram Comunistas. Saíram todos e eu esperei.
        Voltei ao cadeirão quando me senti novamente sozinho. Coloquei a mão sobre o meu primeiro livro. Ao sentir o rugoso da capa, verti uma lágrima. Respirei fundo e lembrei os anos de luta de tantos outros companheiros e amigos. No rugoso do meu primeiro livro, com a ponta do meu dedo indicador, escrevi o teu nome devagar, como se corresse tinta dentro de mim. Voltou a cair uma lágrima do meu olho, caindo com o atrito de uma singular pestana.
        - Bernardo. Você está bem? – Disse ao de leve a voz que vinha do fundo mais escondido da sala.
        Não consegui responder de pronto. Chorava convulsivamente, num paradoxo de alegria e tristeza, de felicidade e nostalgia, de contentamento e melancolia. Sabia o preço da revolução, os anos de trabalho de tantos, as décadas de sofrimento dos demais. Sabia o preço que muitos tinham pago por lutarem pelo direito a uma vida sem precariedade, sem tristezas ou injustiças. Sabia o preço que muitos camaradas mortos e vivos tinham pago por saírem para a rua para pintarem murais, entregar propaganda. Sabia o preço que todos nós, os comunistas, pagámos por lutar contra fascistas, capitalistas, racistas, xenófobos, nazis. Sabia o preço e alegrava-me que a história e a razão tivessem sempre caminhado de mãos dadas connosco. Lembrava-me do maravilhoso contador de histórias que era Fidel Castro, esse mesmo sonhador que rugia em mim sempre que as forças me faltavam.
        Chorava naquela livraria com a mão abraçada ao meu primeiro livro. No canto da sala continuava a alma penada a querer saber do meu estado de ânimo.
        Respondi depois de um longo silêncio. Soubera sempre responder a perguntas. Os meus alunos sempre me fizeram as perguntas certas, e eu, sempre tentara dar as respostas correctas.
        - Estou muito feliz. A revolução começou agora. Sei que vamos chegar ao poder e que o povo está connosco. Não tenho mais nada a temer, nem para mim nem para a minha família. Hoje, é o inicio de um novo dia. Temos neste momento em mãos o futuro de uma nação e temos o dever de sermos aquilo que sempre dissemos ser, o partido para as massas, com ideias fundamentadas por Marx e materializadas por Lenine. Estou muito feliz. O camarada
Gonçalo é competente, viveu sempre de padrões morais altíssimos, sempre o vi contagiar os outros pela palavra, pelo dom da palavra. Sei que fará um bom trabalho, não ele apenas, porque o partido é um colectivo, sempre o foi, sempre o conseguimos manter assim, por isso e porque hoje como sempre e talvez mais do que nunca, sou comunista. E hoje e amanhã e o resto dos dias que o Mundo terá, viveremos num socialismo verdadeiro, rumo ao comunismo há muito ansiado.
        - Mas então, porque choras?
        - Choro porque não consigo dizer o nome dela. Choro porque hoje gostava de estar na rua juntamente com ela, vestidos de vermelho, a gritar a revolução e o nosso amor. Choro as lágrimas de quem nunca chorou durante anos e anos, de quem sofreu de uma saudade infinita. Choro porque não consigo dizer o nome dela. Posso escrever o nome em livros, em todos os livros que escrever, mas não poderei nunca dizer o nome dela, porque ela nunca ouviu a minha voz, ela nunca soube que o nome dela se transforma na minha boca, ela ficou na minha juventude, presa num tempo em que escrevi apenas para ela. Daí este livro e todos os outros que escreverei.
        - Mas ela nunca ouviu a sua voz? Ela existiu? Ela morreu? – Disparava perguntas sobre a minha divagação o simples.
        - Ela não morreu. É provável que esteja por essas ruas, a cantar com o castanho do seu cabelo emaranhado num vento que nunca foi meu, a chamar pelo partido da saúde e da educação. Sim, tenho a certeza que ela já está descalça, a caminhar pelo ruído dos carros e das buzinas ambulantes, a clamar futuros poéticos. Tenho a certeza toda do mundo que ela saiu do Hospital de braços abertos, talvez ao encontro de um amor que a acompanha agora na revolução. Alegra-me pensar assim.
        - Mas se ela existiu, se ela está por aí, porque nunca ouviu a sua voz? Porque não lhe mostra a sua voz? – O rapaz enternecia-me com a paixão que propunha.
        - Julgo que sempre fui melhor a escrever do que a conversar. Fiz da escrita a minha voz e esqueci-me de lhe dizer a grandeza do seu olhar. Perdi-me em espantos líricos e não fui capaz de lhe oferecer uma voz de encanto, uma voz que podia ter sido de convite, um convite para escolher a eternidade comigo. Mas isso já o tempo consumiu, já está lá atrás. Agora, velho e frágil, não sei dizer o nome dela.
        Levantei-me do cadeirão e coloquei o meu primeiro livro debaixo do braço, dirigindo-me depois à janela de gordura e de dedos e de garatujas. Abri a janela com delicadeza. Debrucei-me para ouvir as gentes na rua. E voltei a ser feliz. Vi os milhares de caminhantes a caminhar com um propósito. Os sorrisos de velhice, a astúcia dos imberbes, o choro incessante de bebés incompreendidos. Não parei de chorar. As lágrimas caíam agora sobre o sopro de ventos vadios. Mas eu estava feliz.
        Olhei para o jovem escondido no escuro da sala e pedi-lhe para repetir o teu nome. Ele acedeu e pediu-me para também eu o repetir. Voltei-lhe depois costas para voltar aos ecos de revolução da rua.
        Limpei as lágrimas que me enrugavam mais o rosto e no expoente da demência gritei bem alto para as bandeiras vermelhas, para as foices e os martelos, para os Chés, para as boinas, para as fardas, para os cânticos, para todos os que puderam ouvir:
        - ISAAAAAAAAAAAAAAAA.
        De repente, o silêncio. As ruas eram agora um monte de surdez. Nada se ouvia. Nada, o movimento das bandeiras e o amontoar de paus era um murmúrio de silencio. Todos pararam de andar, até o senhor Saraiva estagnou no meio da praça. O país parava porque eu gritava e não conseguia perceber.
        O meu primeiro livro escorregou-me das mãos, sacudido por uma sensação de estranheza, por um palpitar interior, por um nervosismo de saudade, por um frio arrepiante. O meu primeiro livro caiu para a rua e enquanto ele caía, eu olhava para a multidão, para ti que estavas como na juventude, de lábios em forma de cegonha, de cabelos lisos, jovens, castanhos, de olhos límpidos, de vestido vermelho tal como eu te imaginara, eras tudo candidez, eras tudo lealdade temporal, eras tudo perpetuidade. O meu primeiro livro continuava a sua descida para o infinito, e tu, olhavas para mim, como se nunca tivesses parado de olhar, como se durante toda a nossa vida eu te tivesse chamado vezes sem conta e tu ouvisses.
        O meu primeiro livro bateu com estrondo no alcatrão, algumas folhas desprenderam-se do seu corpo e voavam dispersas pela revolução.
        Sem tirar os olhos de ti, senti a mão do jovem a tocar no meu ombro enquanto me dizia:
        - É muito bonito não é, tudo isto?
        Mas eu já não estava naquela sala. Eu já não estava na livraria. Eu já não estava naquela janela de gordura e de dedos e de garatujas. Eu já não era nenhum escritor. Eu já não estava sentado na poltrona de pó. Agora eu era tudo completude. Caminhava ao teu lado, beijava-te o rosto e os lábios a cada dois passos, dizia amor e dizia Isa. Dizia Isa e dizia amor. Não me restava muito mais. Tinha reencontrado a razão dos meus livros.


Ao amor, à revolução e a quem me faz escrever.

Comentários

  1. Isa...é LIBERDADE!
    100 comentários((!!!

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  2. interessante((!!

    Os mais importantes pensamentos concentrados no dedo mínimo do pé esquerdo.
    As minhas sensações mais íntimas escondidas no dedo mínimo do pé esquerdo.
    (de: Gonçalo Tavares)

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    Respostas
    1. ((!!

      "Às vezes escondo-me no corpo e ninguém me vê.
      As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas.
      Posso até dizer algumas palavras,
      posso até exprimir-me num longo discurso,
      mas a verdade é que não falo com elas.
      Estou escondido algures no meio do meu corpo."

      (citação de um poema de: Gonçalo Tavares)

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    2. Não tinha percebido que a citação era do Gonçalo M. Tavares.

      Mas fiquei curioso em relação ao post. O porquê? E de quem o fez?

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