O futebol entre iguais

       

        A terra parece mais verde visto dos meus pés. As chuteiras querem descalçar-se e o pé quer ceder. O campo despido de relva quer crescer para ser moderno. As balizas têm falhas de tinta, foram rematadas demasiadas vezes e o pincel que outrora passeou entre os postes e a barra é agora uma miragem. O varão que olha desde a linha de fundo tem mãos pousadas e algumas pernas a quererem invadir as quatro linhas. As grandes áreas rectangulares estão demasiado longe para que eu me aproxime. A equipa que equipa de várias cores e de vários símbolos está alinhada à minha esquerda. Os árbitros parecem desconhecidos a gesticular qualquer coisa para dois homens de braçadeira. Eu nunca usei aquela braçadeira, lembro-me de pensar. A moeda está no ar e ninguém sabe onde irá parar. Alguém escolheu cara ou coroa. Eu nunca escolhi cara ou coroa, lembro-me de pensar.
        Os meus braços encostam-se para trás, sinto-me mais profissional de boca fechada e de braços cruzados atrás. Olho para o meu lado direito e o Pinto tem uma expressão de cansaço e concentração, parece querer rematar o esférico que está parado no centro do terreno. Ao lado, o Paliotes tem os calções demasiado curtos para a longevidade das suas pernas, ele sorri para o centro do terreno, sabe que a qualquer momento a redondinha virá cair aos seus pés e ele saberá ultrapassar quem lha quiser roubar. Pouco distanciado de nós os três, está o Gonçalo, todo ele técnica, todo ele estética, todo ele futebol. Tem calçadas as melhores chuteiras da história, não pelo preço, não pela qualidade, antes, por tudo aquilo que já produziram, qual proletário que trabalhou e produziu, daquelas chuteiras deslocaram-se vírgulas, pontos e virgulas, roletas, tudo, tudo o que faz o futebol ser futebol. Os três olhamos para ele e sabemos que as pernas não foram feitas para voarem daquela forma, mas também sabemos que ele voa pelo campo ao toque de uma cadência romântica.
        A moeda cai ao chão e eu olho para o Duarte que ajeita as meias pelo joelho, como se o ballet fosse possível dentro de um campo de futebol. Sei naquele instante que o pé esquerdo do Duarte vai imaginar o ângulo da baliza, onde dorme a coruja, onde adormecem os grandes festejos. O Duarte tem a pele morena do sol e de praias. Continua a remexer nas meias encarnadas e eu sei, ele sabe, que mais tarde ou mais cedo terá de enfrentar um qualquer bicho-do-mato no meio campo que ousará mostrar-lhe os pitons. Há medo e aventura nos olhos do esquerdino. Mas há um homem que não tem medo. O Morais está no alinhamento e o rosto é imenso, é um rosto de aço, crente que será o último jogo da vida dele. Não importa em que zona do terreno andará, a sua presença será notada, os seus gritos de energia serão o sumo que mergulhará nos gestos de quem o ouve. O Morais descobre o futebol em cada lance, de cabeça, de pé esquerdo, de ombros, de pernas, de velocidade, o Morais é futebol desde os pés até ao céu.
        O homem vestido de negro quer iniciar a partida. O Paliotes parece entretido com a bola, engana o Duarte com um passe fictício. Eu vejo o desfile de diversão desde o lado esquerdo do meio campo. Concentro-me. Mas a distracção toma conta de mim. Não consigo deixar de pensar que o campo me diverte demais para que o meu semblante seja de seriedade.
        O árbitro ainda não apitou para que a bola role. O Gonçalo fala com o Duarte. Hoje vamos fazer miséria dos meninos, é ou não Duartinos?
        O público ocupa os lugares que não existem. Fazem um barulho que não se ouve. O bar está condenado ao sucesso. Há mais gente a olhar para um barril de cerveja do que para os jogadores que desfilam dentro das quatro linhas.
        A circulação de bola pouco nos importa. Queremos é saber que truque sairá dos malabarismos do Paliotes, que bola parada do Duarte irá sentir as redes de um guarda-redes desamparado, que altitude terá a recepção do Gonçalo, que chama será vista de um remate potente do Pinto, que arrancada olímpica fará o Morais quando tiver espaço. Isso é o que nos importa. O futebol é feito dessa essência que só se faz nas ruas e nos alcatroes que nos estragam os ténis. O futebol é um universo de crianças que disputam uma rodinha bota fora. É isso o que nos vai na alma inexistente.
        O resultado nunca nos interessou. Perdemos mais jogos do que ganhámos, estou certo disso. Mas ganhámos muito mais do que qualquer homem. Dentro de nós toda aquela envolvência era um sem limite se sensações, entre elas uma amizade que nos permitia rir com um golo sofrido.
        O jogo acontecia e para nós o importante era o antes e o depois. O antes porque nos trazia conversas sobre o que provinha. O depois porque nos trazia conversas sobre o que acontecera.
        Minuto 60. O guarda-redes que tínhamos chutou para a frente. No meio campo o Pinto tenta ganhar a bola de cabeça e falha no ultimo instante, encolhendo-se desde o seu quase 1,90m. Na segunda bola, aparece o Morais que subiu desde a linha defensiva para embirrar com a bola que teima em ser quadrada. Vence o duelo individual como se um tronco vencesse um malmequer. A bola rebola no pé esquerdo do Morais e ver-te lágrimas que sofrem. O Morais arranca pela zona central e vê o Duarte solto mais à frente. O bicho-do-mato não larga o pé esquerdo do Duarte. Medo. De novo o medo nas magras pernas. O Duarte simula um movimento de discoteca e consegue receber o passe do Morais. Faz agora a condução desde a ponta da sua canhota, deambula por paragens dos magistrados, dos catedráticos, dos elegantes. Quer oferecer de forma bela a bola ao Paliotes, mas este diz que não o tempo certo. O Paliotes quer a bola mais do que ninguém, mas apenas quando tiver dois adversários perto dele. Ele sabe que só assim o seu futebol resiste ao ordinário, ao comum. O Duarte entende as mãos e as pernas de guita do Paliotes, compreende que fazer a transição agora é estragar o sonho do seu colega. O Paliotes sonhou na noite passada com este lance e não acontecia assim, era diferente, só tem de esperar. O Duarte tem de guardar a bola mais um pouco, inventar um penteado original para que os adversários se colem ao Paliotes. É agora. Está na hora, ele pode brilhar e é hoje o momento. O Duarte repara na guita das pernas, repara que o Paliotes já sorri com o sonho em mente. O passe, seco, a sentir a terra de um pelado que quer ser relva. O domínio do esférico é todo ele uma finta pensada desde os confins do bairro, o domínio surge em forma de revienga e um defesa já foi destruído. O Paliotes sente o frio de uma falta por fazer, as suas pernas são estacas que se deslocam com o intuito de humilharem a linha defensiva. Dois ficaram para trás, o terceiro vem a caminho e os seus olhos já estão trocados, como uma osga que não sabe para onde olhar. O quarto jogador que ousa levantar o pé já tem o rim enterrado debaixo da terra. O Paliotes é um mágico sem cartola. A magia flui quando me avista a mim desde a outra ponta do campo. É preciso alguém ajudar o coelho a sair da cartola, são preciso metros e metros para que a bola chegue até a extrema esquerda. O bombeiro, o soldado da paz que vem socorrer o Paliotes tem altura e peso, o Pinto chama o couro, acaricia-o pouco antes de fazer uma abertura magistral em direcção ao meu pé direito. A bola vem por entre os intervalos do vento até mim e eu recebo-a com a parte exterior da bota. Não restam defesas para me intimidar. O Paliotes e o Duarte destruíram todos os que me podiam fazer mal. Estou só. Posso jogar ao berlinde enquanto espero por uma linha de passe válida. Espero. A linha de passe não aparece e tenho de reinventar algo. Mas ouço amiúde uma voz a pedir que assista. É o Gonçalo que está entre dois defesas centrais duros, com caraças bairristas, com dentes a menos e força a mais. O Gonçalo bate com a mão no peito e eu sei bem onde tenho de colocar a bola. Penteio o tecido branco e sem pestanejar um passe longo já se encaminha para a zona de finalização. Os durões sem dentes permanecem apáticos, sem saber onde e por onde andar. O Gonçalo está a surgir como um fantasma por entre os calções e as camisolas dos bairristas. O seu peito eleva-se até onde os anjos habitam, amortecendo a queda da bola numa suavidade divinal. Só as luvas do guardião pela frente. É fácil demais. Nos jogos de rua não havia facilidade destas. O Gonçalo puxa o pé direito para trás e desenha uma letra enquanto remata para o canto inferior direito da baliza morta. O público que sorve bebidas no bar parece agora deixar o barril de cerveja em paz e olham todos para o pelado que acolhe a amizade de amigos que aprenderam a jogar juntos no calor de um Alentejo duro. O primeiro grito surge quando a rede balança e o guarda redes cai no chão, na poça de água que lhe arrefece a tristeza.
        Golo.
        O publico embriagado salta num gozo que permite abraços e encontrões. O bar é uma boite que acolhe velhos e novos, mulheres e homens, netos e avós.
        Dentro do campo, a alegria de um lado, a amargura de outro. Todos relembram que não há repetição, que no campeonato distrital os golos nunca aconteceram senão na memoria de quem os viu. E isso é o futebol na sua mais humilde simplicidade.
        O Gonçalo corre em direcção ao Morais que o levantará com o seu braço torto e destemido. Numa correria louca, a gritar, vem o Pinto pronto para segurar nos cabelos em forma de caracol do Gonçalo. O Paliotes vem nos ombros do Duarte e ambos têm 6 anos. Vão decrescendo à medida que se juntam aos festejos. Todos querem um abraço fraterno. Eu vou buscar a bola para oferecer aos anjos que seguraram o Gonçalo desde os céus. Junto-me à folia e naquele encontro somos os melhores jogadores do mundo.
        O árbitro apita para o final da partida.
        O campo de futebol do Sporting Clube Linda Velha está agora num silencio absoluto.
       
        Para lá das quatro linhas e muito depois do corrimão que abraça o campo, estou eu. Tenho 28 anos. Deixei o futebol à tanto tempo que me custa olhar para a relva que agora floresce de forma sintética. Olho para dentro das linhas que outrora eram pintadas a cal. Olho para as balizas que já não precisam de nenhum pincel. Olho para o centro do terreno e vejo a bola. A bola está parada no centro. A bola está parada e não vejo o Paliotes e o Duarte a brincar. A bola está parada no centro e o Morais já não tem a força de trinta mil cavalos. A bola está parada e o Pinto já não tem 1,90m de futebol. A bola está parada e o Gonçalo já não se eleva com os anjos. A bola está parada e eu já não sei jogar futebol.
        Já se passaram muitos anos. O tempo levou o futebol que sempre me encheu de contentamento. Levou também as manhãs e as tardes que nos tomavam de ponta para sermos jogadores de futebol.
        Já se passaram muitos anos.
        E a bola ainda no centro do terreno, esperando que um dia nos equipemos de novo e possamos repetir todas as memórias que guardamos.    

Comentários

  1. Muito bom Bernardo.
    Gostei muito de ler isto. Abraço

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  2. Meu caro. Apraz-me dizer que o texto está muito bom. Sei bem o sentimento espalhado por mais de uma década dedicado a um encanto que só o S.C Linda-a-Velha conseguiu ter. Sei bem do sentimento que fica quando tudo acaba, porém onde tudo foi maravilhoso. Sinto-me orgulhoso por ter subido 2 vezes de divisão – Foram conquistas que me realizaram -. É importante sentir que há pessoas como tu, cheias de boas recordações e bons amigos que perdurarão até aos confins da vida, sempre com um sorriso e boas lembranças que começam sempre por; “ Lembras-te?”. Ao olhar para trás e analisando os meus 13 ou 14 anos de Linda-a-velha tenho um sentimento agridoce, pois aquilo que fiz durante uma década e meia foi talvez dar os melhores anos da minha vida sem querer nada em troca, por pura paixão pelo futebol e pela camaradagem. Infelizmente o meu fim foi um pouco triste, porém necessário para o clube; assim entenda-se nessa altura. Mesmo assim foi simplesmente fantástico. Conheci-os e aprendi muito com todos e ao olhar para trás sinto o que tu sentes e descreves tão bem. Ao recordar tudo passa na minha mente em câmara lenta, talvez para perpetuar a saudade que em tempos vesti o melhor equipamento que alguma vez podia almejar. A bola encontra-se no meio campo já puída pelo tempo, já enraizada e empedernida de não ser tocada por nós. Quem sabe um dia... Um forte abraço. Gostei muito de te ler.

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