O meu tio


        A cal da casa que ocupa as minhas traseiras é antiga, como o é a cadeira azul, perdida num tempo em que alguém a inventou. O carrinho de mão, de obras sempre incompletas, enche mais as brincadeiras de crianças do que o trabalho dos mais velhos, é um carrinho sem cor, enferrujado pelo tempo incerto, quente, frio. As telhas da casa forrada a cal, são desajeitadas e não compreendem que estão a morrer. O meu tio não sabe o que é morrer.
        O meu tio olha para mim. A sua camisa abotoada até ao limite do seu pescoço diz-me que o mundo rural sempre fez parte dele. As calças azuis de um escuro que de sujo não parece ter cor alguma. O meu tio tem os braços caídos enquanto olha para mim. A camisa do meu tio é mais antiga do que eu e do que ele. O cinto, o cinto segura a humildade de um homem que não conta os dias, de um homem que vive da terra, de um homem que sonha mais que o mundo, de um homem que não sai de casa sem a boina castanha baça, de um homem solitário com um amor perdido.
        O meu tio olha para mim criança. Eu olho para longe mas sei que o meu tio me protege dos montes, do mal, das ervas, da terra, dos pregos perdidos, dos cartuchos vazios, das raposas. Eu olho para longe mas tenho o meu tio ao meu lado a dizer-me que é igual a mim.
        Tenho um boné azul, com indicações para uma garagem qualquer de automóveis. O boné foi encontrão pelo meu tio. Foi ele que mo deu com a certeza que mais ninguém o usaria. Deu-me também a espingarda fingida que trago. Tenho uma espingarda a tira colo, uma espingarda a fingir que o meu tio montou para mim. O meu tio era igual a mim. Ele sempre me viu igual a ele. Tenho uma espingarda que eu sempre achei semelhante à que o meu tio usava quando caçava para se alimentar.
        O meu tio não era mau. Nunca caçou por maldade, nunca caçou por desamor, nunca caçou por prazer. O meu tio caçava para comer, caçava para se esquecer.
        Tenho as orelhas de criança. Uma camisola curta, de um bege que já não se faz. O meu tio olha para mim com uma doçura que não se encontra mais. Ele era uma criança como eu.
        Guardo tanto desse meu tempo. Foi um tempo curto, foi uma semana, foi uma semana em que o meu tio foi o meu melhor amigo. Guardo em mim a espingarda aos ombros e o meu tio a explicar-me como se encontravam os coelhos, como se bebia água fresca do poço, como no campo se vive de forma simples, como se vive mais quando se acorda de madrugada, como se desfruta de uma rocha sentimental no meio de uma serra.
        Tenho a falta imensa do meu tio dentro de mim.
        Lembro as caminhadas matinais do meu tio, quando ele não olhava para atrás e o cães sem nome o seguiam. No frio do madrugador, eu já o seguia depois de um copo de leite e um pão com manteiga. Sentados ali no seu quintal, perto da sala onde guardava as velharias, olhávamos a manhã com uma vontade de caminhar, de andar, de suar pelo dia.
        O meu tio não falava muito. Ele nunca foi capaz de me contar o seu segredo, mas eu fui descobri-lo sozinho.
        Era final de tarde quando entrei no quarto de dimensões mínimas, ao lado da cama estava acomodado um fato branco. Perguntei ao silêncio se o meu tio alguma vez o teria usado. Perguntei ao silêncio se seria possível o meu tio sair à rua com aquele fato.
        Nunca tive coragem de lhe perguntar sobre o fato. Mas alguém me contou. Não me recordo quem, não sei onde guardei a pessoa que me contou o segredo do meu tio. Talvez tenha sido a minha avó. Talvez tenha sido a minha mãe. Mas o segredo comoveu-me.
        O meu tio tinha um amor. Um amor perdido no tempo que o levou. Era uma mulher sem rosto que destinou a solidão do meu tio. Queria ter visto o rosto dessa mulher, porque o meu tio era muito bonito e ela deveria ter sido também.
        O meu tio olha para mim com os seus cabelos brancos tapados pela boina que colocava sempre que saía de casa. A barba despia o rosto do meu tio e eu sabia que ele era o meu melhor amigo.
        Vejo agora que o meu tio foi melhor do que todas as pessoas do mundo. Porque sempre sonhei ser o meu tio. Ainda hoje. Queria ter a força do meu tio e uma espingarda igual à dele. Mas o meu tio nunca mais vai existir e nunca me irá ensinar como poderei respirar o mesmo ar que ele.
        O poço continua por lá, mas eu não vou lá voltar por agora. Vou esperar um filho, vou esperar por levar o meu filho a beber aquela água. Irei construir uma espingarda a fingir para ele. Vou aquecer o leite no fogão do meu tio e encher o pão com manteiga e depois vou sair de casa com o meu filho, vestirei a camisa e apertarei os botões até ao limite do meu pescoço, e não me vou esquecer de esconder os meus cabelos brancos com a boina castanha baça. Sairei para passear pelos montes de coelhos e raposas e saberei aí que o meu tio ainda não morreu, saberei que o meu tio continua a ser o meu melhor amigo.

Comentários

  1. que texto fantástico Tomé!
    ... e tu serás o melhor amigo do teu filho, seguramente que ele vai entender e acreditar e será também o teu melhor amigo.

    ao ler o teu texto, é quase como se estivesse lendo JLP.

    parabéns!

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  2. É sempre bom quando alguém nos lê.

    Muito obrigado.

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  3. Este texto está belíssimo...
    E, claro, tenho de concordar com o comentário de cima...
    De certa forma, ler-te é como ler JLP.
    O teu nome poderia muito bem estar na capa de um "Abraço" a desfiar memórias de outros tempos.
    Mas estará na capa de "Um trago de palavras" e aí vai ser melhor. Porque sairás da sombra. E teremos mais um autor brilhante lançado.
    Mais uma vez, Parabéns.
    Já salvei este cantinho nos meus favoritos para ir acompanhando as letras que aqui deixas.

    Um abraço.

    Guilherme Lima

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  4. É sempre bom quando encontramos alguém que gosta do que escrevemos. Vai aparecendo Guilherme.

    Grande abraço.

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    Respostas
    1. gostaria de continuar a ler o que escreve, porque gostei muito.

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  5. Gostei muito deste texto. Realças laços familiares, a troca de amor sincera e pura... Gosto de tudo o que leio, imagino "Um trago de palavras"!
    Continua a escrever e mais uma vez parabéns. :))

    Sandra Marques (SM)

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