Passa o tempo em nós

      

  Eu estou a ser uma criança que anda na Escola. Tenho os ténis de atacadores ausentes, calções curtos demais firmados nas minhas pernas de guita. Sou todo eu, uma camisola que tem três números subidos de mim. Eu sou uma criança que se lembra de ser adulto.
        Estou a olhar-te da minha rua. Do terraço que me separa do mundo, vejo-te na esquina de cabelo voador, tens um elástico colorido e o vento surge ao canto dos teus olhos. Eu do terraço consigo ver a candura dos teus lábios. És uma menina e eu uma criança que sabe que vai crescer. O meu castelo é o meu terraço. E é o melhor farol terrestre, porque te avista a ti.
        Persigo-te pouco depois de a rua terminar. Corro com a fúria de mil cavalos a galopar. Corro em silêncio porque não quero que me oiças chegar, quero que passem anos, décadas, milénios, para que tu saibas de mim. Quero que me sintas bonito tal como eu te vejo desde menina.
        Vais para a escola de mochila pesada. Deixa-me carregar, penso e não digo. Deixa-me levar-te ao colo até às nuvens, penso e não digo. Posso dar-te a mão até à escola, penso e não digo.
        As grades que separam o mundo das crianças do mundo dos adultos, engrandecem a cada aproximar de passos. E é ali mesmo que te vejo novamente. Em pequenos saltos, trocando as voltas ao chão que esconde calçadas simétricas. Os teus saltos são leves como a tua beleza. A tua beleza é do tamanho dos saltos que anseio até ti.
        Eu sempre gostei da escola. Deixava-me a brincar. A escola era toda ela um recreio para mim que pensava que nunca iria falecer. Na escola eu era imortal. As crianças são sempre imortais.
        Tu surgias nos recreios. A tua idade era mais velha que a minha. A tua candidez era muito mais bonita que a minha. No meio de tantos movimentos no recreio, tu nunca reparavas no meu andar. O meu andar era vulgar e queria imitar o teu. Desde novo que queria saber o teu ritmo, para que ao crescermos juntos, eu pudesse abraçar-te e caminhar ao teu lado.
        Eu julgava a paixão nos teus cabelos claros. A densidade extrema dos teus lábios era para mim um beijo da eternidade. Eu sabia o que era estar apaixonado e tu não sabias que eu já me tinha perdido nos teus ombros. Eu queria ser o teu namorado de infância. Mas foi outro. Eu gostava dos teus sapatos e o outro não sabia o teu sorriso. Eu casava contigo.
       
        A infância foi fazendo de mim um homem sem rebeldia. Foi-se-me todo o encanto de uma gargalhada infantil. O cabelo caiu e trocou de lugar com uma barba que faz comichão. Deixei de ser bonito como qualquer criança.
        A infância foi fazendo de ti uma mulher com maturidade. Os teus cabelos de claridade tornaram-se radiantes e belos. Os teus lábios de densidade extrema continuaram a ser os mais beijáveis do universo. Tu és agora uma mulher bonita e todos te gabam. A cor dos teus olhos tem a memória de uma vida.
       
        Crescemos.

        O teu cabelo escureceu.

        Passaram-se anos sem que ouvisse a tua voz. Lograva saber poesia das tuas cordas vocais. Tive de esperar. Os anos teimavam em não te trazer até mim. Calmamente esperei. Voltei à escola como professor e descobri que ainda te esperava na esquina. Ainda te procuro nas grades e no portão. Mas tu chegaste por outro lado.

        Num lugar de escuro musical, de batidas e guitarradas, apareceste-me como uma nota musical. Tinhas um copo na mão e eu quis que o copo fosse a minha mão. Tu conversavas com amigos e eu quis ser teu amigo. Tu estavas muito bonita e eu compreendia melhor porque tinhas sido a razão da minha espera.
        Deixaste-me conversar contigo. Tudo o que dizias parecia ser de uma inteligência sensível. Eu ouvia a tua voz misturada com a música e o escuro das luzes incidia sobre o teu rosto. És uma pessoa muito bonita, queria ter dito. Falámos e eu escondi a minha paixão. Guardei a fascinação que eras para mim e conversei. Os anos tinham sido doentes sem ti e eu saboreava a tua companhia como se nunca mais nos fossemos largar.

        A noite terminou.
        A noite levou-me a tua companhia.

        Os anos não aconteceram depressa contigo longe da minha distância.

        Voltaste novamente sem que fosse anunciado. Em forma de palavras tentaste entender a direcção da minha pergunta. Disseste que eu não era assim, que não queria ser pessoal contigo.
        Dessa vez eu não me calei.
        A lembrar o meu terraço e as corridas até ti, disse o que sentia. Revelei-te a plenitude dos meus sentimentos. Abri os braços para aquilo que suscitavas em mim. Ousei demais, sem ousar pedir-te um beijo. Tu dizias que eu estava louco. Que tinha de dormir. Perguntavas o que se passava. E eu estava louco. Sempre estive louco por aquilo que via em ti. O teu rosto era o traço que mais queria. Por isso não custou dizer o sentido dos meus tremores.

        Tu não estás bem.

        Deixei-te ir dormir. Sabia que amanhã te podias esquecer de mim. Fantasiei até, que talvez antes mesmo de fechares os olhos para adormeceres, pudesses recordar o meu nome ao lado do teu. Criei dentro de mim a ilusão de que pudesses recuar o tempo e olhasses para o meu terraço e encontrasses os meus olhos. Recuasses o tempo e ouvisses os meus passos atrás de ti, me desses a mão e dissesses no recreio que eu era o teu namorado. Recuar o tempo para saberes que tudo o que digo não é em vão, que já perdi demasiado tempo sem te dizer que és bonita demais e que quero abraçar-te e passear contigo todos os dias, porque decorei o teu ritmo e sei que poderíamos ser.

“A quem pensa que não estou bem.”

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