Não vejo as tuas mãos em Veneza

       

        Não sei o que te fez partir para Veneza.
        Pouco sei da cidade submersa. Nada quero saber da cidade mergulhada. Interesso-me por ti. Por tudo o que a cidade fez de ti.
        Surges-me sempre por entre gôndolas que se vão abandonadas, sem pessoas, sem remos, só brisa. Tens o rosto em diagonal e um sorriso transparece magnificente. Atrás de ti surge todo um império alagado e tu vestes de encarnado, com os ombros descobertos, largados, para que a tua pele sinta um tecido castanho, talvez um casaco. O teu olhar em diagonal traz um pescoço escondido num abraço de um cachecol que tem curvas de leopardo. O teu sorriso magnificente. Os teus lábios cortantes, enviusados, a libertarem uma felicidade romântica para aquela cidade que tens às costas.
        As gôndolas continuam abandonadas.
        O teu cabelo endireita-se com a urgência de estar belo, de tu seres bela. O sinal que te cobre a testa e que se esconde perto dos teus olhos, esse sinal é a tua história de mulher, é o renascimento de uma beleza que nunca desapareceu.
        O teu cabelo ganha tons de dourado porque tu és o sol. O brilho que vem de um céu veneziano é teu, és tu que crias, és tu.
        Não te vejo as mãos e elas são a tua delicadeza. Queria saber das tuas mãos em Veneza. Somente ali poderiam ser ainda mais delicadas e solenes. Eu escreveria um livro sobre as tuas mãos e ainda sobravam palavras para as fazer vida. Não vejo as tuas mãos em Veneza.
        E de novo o teu olhar em diagonal. E o encarnado que cobre parte do teu corpo, essa cor que enfeita as gôndolas e os telhados e s tecidos de barcos. O teu encarnado que te faz florescer. A tua cor. A tua saliência para seres eternidade, equilíbrio.
        Não vejo as tuas mãos em Veneza, mas guardo em mim uma lembrança inteira de querer ser o reflexo do teu olhar me diagonal, ser o sorriso do outro lado da rua, ser a razão de tamanho sorriso, ser o braço que substitui o cachecol e que te cobre de romantismo e lirismo, ser o poeta que Veneza não sabe que existe, ser o teu encarnado e ser eu toda uma cidade imensa para ti.
        Mas fico-me pelas palavras. É tarde demais para te encontrar no meio da cidade submersa. Tarde demais para tudo. Resta-me somente balançar-me o suficiente para que tu percebas que eu existo.

        “As evidências diziam que passavas por mim. Eu deixei-te passar, mas nunca te segurei.”
Vergílio Ferreira  

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