Tarde ou cedo

       

        Um relógio suspende-se na parede. É tremendo, redondo e ajeita-se em ponteiros humanos. São duas pessoas que se esticam para marcarem as horas. Seguram os símbolos em numeração romana para indicar que o mundo segue o seu rumo. Os ponteiros são dois corpos despidos que passam entre si durante o dia. O seu todo é um relógio tremendo que se suspende na parede.
       
        Ao olhar para o relógio de pulso, pergunta-se se chegará a horas. Acelera os sapatos engraxados e encaminha o corpo para o seu despertar.
        Escolhe entre as chaves aquela que coincide em pleno com a fechadura de uma porta envelhecida. É a mais comprida. A chave que escolhe é formada por um círculo e desagua em forma de garfo.
        Abre a porta e segura-a uma segunda vez para dar passagem a um vizinho de suor infantil, carregando uma bola de futebol gasta pelos chutos da meninice. Trocam por breves momentos um olhar cúmplice, como se um admitisse ao outro que o futebol os poderia unir, que poderiam ser duas crianças a driblarem-se num campo de futebol, dois brincalhões a fazerem golos, a festejarem esses golos. Olham-se e sabem naquela fracção que as idades distantes não permitem um jogo de futebol. A distância das idades permite um olhar e a cumplicidade, nada mais.
        Sobe as escadas. São 94 degraus até à sua porta. Lembra-me de ser menino e de gastar tempo e cansaço a contar os degraus, pedra a pedra. Hoje já não tem tempo para os subir e descer, apenas e somente porque perdeu a contagem. Hoje sobe os degraus e sabe que são 94 porque já foi criança.
        Tem a porta à sua frente, a dois sapatos de distância e ouve as cantorias da vizinha obesa da porta do lado. Quer tocar a porta da vizinha obesa e dar-lhe um abraço. Desde sempre que sabe que a vizinha obesa é triste e que perdeu o marido e os filhos pelos ruelas da vida. Conhece a tristeza da vizinha obesa e sabe que não é a obesidade que a apoquenta. A solidão. Quer dar-lhe um abraço e sentar-se a ouvi-la contar-lhe histórias. A vizinha obesa chora do outro lado da porta e o prédio inteiro apenas consegue ouvir a televisão com o volume no máximo.
        Volta a escolher uma chave entre algumas. O hall de entrada recebe as suas mãos e os sacos cheios de brincadeiras infantis. Deixa cair os planos de aula para o chão e não se preocupa em apanhá-los. Não importa. Nada importa quando chega a casa.
        Olha para a sala e escolhe entrar no seu quarto. Percorre com o olhar o quadro de cortiça na parede. Não existem fotografias no seu quarto. Ela já não lhe pertence e não restam imagens. A cortiça feita para receber sorrisos e abraços fotografados, está vazia. A cortiça faz lembrar a vizinha obesa pela sua solidão, pelo seu eterno espaço vazio.
        Livros.
        Sentado no sofá que adormece no seu quarto, não lhe apetece nada. Desliga o telemóvel. Ela nunca mais ligará. Desliga o telefone de casa. Ela nunca mais ligará. Liga o computador. Ela estará guardada num ficheiro e permanece como antes, em textos, em programas, em imagens soltas. Volta a desligar o computador. Ela sobra em textos, mas não voltará em nenhuma tarde.
        Livros.
        Com a ponta do dedo indicador, sente o pó que embarga os seus autores favoritos. Eugénio. Palavras gastas e poeirentas. Rubem Alves. Conselhos que não foram seguidos. Kafka. Metamorfose lido na cama dela. Sartre. O ser que queria ser e o nada que sempre foi. Lobo Antunes. Assinado a pedido da mulher mais bela do mundo. História Interminável. Jostein Gardner. A rapariga das laranjas. O cesto. O amor que tinha a morte a impedir. Saramago. Ela a ler e a ser a maior flor do mundo.
        Livros.
        Reclinado no sofá, sabia que os livros nunca a trariam de volta.
        A estante era repleta de ideias. O mesmo perfume de criança. Os sapatos e as botas perdidas num armário escondido. Perguntava-se agora porque nunca se tinha mudado com ela. Porque teria temido uma vida em conjunto. Sempre soube que ela era completa, mas só agora percebera que não havia melhor caminho que o de se entregar à sua casa, à sua cama, à sua sala.
        Pegou novamente no telefone e suspirou uma frase de eternidade para o ar. Queria descobrir o chamamento para que tudo voltasse a ser perfeito.
        Do outro lado atendeu a sua voz.
        Desligou o telefone porque temia a rejeição.
        Carregou no botão da aparelhagem e acalmou-se com o que ouvia. Não mexera no aparelho desde que ela deixara de fazer sentido. Agora tinha as memórias reavivadas por tudo o que ouviram um dia juntos. Sabia de cor.
        Ligou novamente o telefone. Segurou a folha que tinha escrito. Releu novamente para que não engolisse palavras. Sempre soube que tinha jeito para as palavras escritas mas que era uma nulidade na oralidade.
        Desta vez ninguém atendeu. A sua voz não se ouviu do outro lado.
        Impaciente. Ligou a televisão e procurou um canal aleatoriamente.
       
        O silêncio invadira o quarto. Olhava para a imagem que chega da televisão e o Cinema Paraíso entrava desarmado no seu ouvido. Comoveu-se. Pela primeira vez em meses, chorava solenemente. Imitava os gestos de Toto e compreendeu naquele exacto momento que o foi não voltaria atrás. Ela partira para sempre, como o cinema que era destruído, como o desabamento de um edifício que tinha mil e uma histórias para contar. Segurou a nuca com as mãos e fungando ternamente, chorou a saudade.
       
Do outro lado da porta, calou-se o fado. A vizinha obesa e solitária desligava a televisão 30 anos depois de a ligar pela primeira vez. Como um peso demasiado grande para andar, rastejava pela casa e abria a porta para ouvir a flauta de Ennio Morricone. Bateu à porta do vizinho e deu conta que estava a porta estava apenas encostada. Continuou a rastejar até onde vinha a melodiosa flauta. Encontrou o seu vizinho sentado no sofá a chorar solenemente. Rastejou mais um pouco e abriu os braços para o abraçar.
       
        Chorava a saudade. Mas viu a vizinha obesa de braços abertos e ainda mais comovido abraçou-a. Devagar, sem a pressa de existir, explicou o amor perdido, o futuro que nunca mais seria, contou as mãos finas e os ombros ainda mais finos do seu amor, mostrou os lábios carnudos e maneira como diziam baixinho a palavra tonto, chorou a saudade. Mas abraçado à vizinha obesa e solitário, sentiu-se melhor, seguro. Continuou a contar-lhe coisas, as viagens curtas, os banhos de mar, o amor de mar, o acampamento, o amo-te na porta do quarto, os cozinhados de pijama, os beijos, as palavras cobertas pela noite fora, tudo. As mágoas, as dores, a queda no quarto, o amor.

        A vizinha obesa segurava o pranto e acalmava-o com um sorriso de velha sábia. Não disse uma única palavra. Ficou apenas calada. Sem palavras certas. Escrevinhou num papel e disse-lhe para telefonar e dizer-lhe o que tinha escrito.

        Segurou as palavras e ligou o telefone. Do outro lado a sua voz sentiu. E sem deixar de chorar a saudade disse: - "Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho. Assim nunca esquecerás que te amo.”

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