Saudades sem lembranças

      

        Tudo poderia ser diferente se tu tivesses cuidado de mim, se ao menos naquela infância de fundo, tu tivesses prestado atenção ao meu olhar de criança sem defesas, de criança com medo. Eu tinha medo, sempre tive muito medo e tu nunca viste o tremor que tinha dentro de mim, nunca conseguiste tranquilizar o terror que despontava do meu intrínseco. Eu tinha medo. Eu ainda tenho medo.
        Quantas vezes não esperava sentar-me no jardim de uma Lisboa que eu inventava, ao teu lado, a ver-te falar da tua juventude e das pessoas que amas-te. Eu via sempre o jardim, tu estavas no jardim, sentado num banco pintado de fresco, sujo de tinta, só e apenas para me fazer rir. Sujavas a roupa no fresco da tinta para ouvires a minha gargalhada, e eu era todo felicidade.
        Passeei por tantos passeios com a tua mão a segurar a minha, como protecção das insígnias do mal. Tu paravas nessa minha imaginação, paravas para me levantar ao colo e chamares-me filho, não dizias o meu nome, chamavas-me filho e eu ficava orgulhoso do meu pai. Eu ficava orgulhoso e rodeado de ternura por ti.
        Chamei-te Pai, no dia dos meus anos foi assim que te chamei, porque sopravas as velas comigo e pedias um desejo ao meu lado. O desejo que eu pedi nunca se realizou. Tu nunca estiveste no meu aniversário, nunca trouxeste as velas de chama eterna, nunca soubeste a minha idade. Mas eu amei-te, eu amei os sonhos que tinha de ti. Tu eras o meu pai nos sonhos. Tu és o meu pai mas não existes.
        Podias ter-me ensinado a nadar, contigo eu aprenderia rapidamente. Faríamos das praias o nosso Oceano privado e tu esbracejavas à velocidade que eu conseguia, juntos, no frio de um mar qualquer, nadávamos pela vida até chegar ao dia de hoje. Mas eu nunca aprendi a nadar. Tu não construíste nenhuma praia para eu caminhar, nem sequer te escondeste nas dunas, foste mais fugaz do que a espuma das ondas e não construíste a nossa união na areia molhada.
        Às vezes, antes de adormecer, olhava para o meu irmão mais velho que partilhava o quarto comigo. Olhava para ele e via-te nos olhos dele, percebia o meu choro nesses momentos, entendia que tu podias ter sido o nosso pai e contar-nos-ias uma história, talvez o Peter Pan, a minha favorita. Mas eu ficava a olhar o meu irmão e ao ver-te a ti, falava com ele sobre os filmes, sobre as aventuras na mata ou inventava brincadeiras com músicas. Ficávamos a noite inteira a conversar, como verdadeiros irmãos que sempre fomos. Sei agora que tenho saudades muitas desse tempo, dessa minha infância com o meu irmão, com o meu parceiro de quarto.
        Sempre me revi no Peter Pan, nunca quis crescer, queria ter ficado infância. Não gosto do adulto que me tornei. Parece que te vejo nos meus olhos de manhã. Eu não quero ser como tu. Eu quero ser igual àquele que eu sempre imaginei, forte, corajoso, fraterno, amigo, leal, sincero, justo, sábio, culto. Queria que tu tivesses sido assim, tenho a certeza se assim fosse, também eu te seguiria e talvez fosse um pouco melhor do que sou.
        Imaginei-te sempre diferente. Houvera dias em que foste assim, nas passagens mais efémeras que consigo recordar. O teu gosto musical é engraçado, parecido com o meu. Acho que tens sensibilidade mas que a escondes de tal maneira que ninguém a conseguiu ver até hoje. Fico triste, triste sensível por nunca me teres mostrado a sensibilidade.
       
        Olho agora a fotografia, a única fotografia que tenho tua. Vestes um casaco encarnado e umas calças de ganga azuis. Pareces simples, o cenário atrás de ti é sensível e tremendo. A única imagem que tenho tua é simples. Está frio no recorte, sinto o frio nas tuas mãos vazias de mim, vejo que nesse dia talvez te tenhas esforçado por ser melhor.
        Mas não posso reinventar-te de novo. Já me iludiste vezes demais.
        Onde estavas tu quando a Escola não fazia sentido e me perdi por incertezas? Ou quando tive medo de crescer?
        Onde estavas tu, sim, tu, pai, quando eu descobri que amar era sentir falta e estar tonto de contentamento?
        Onde estavas tu quando deixei de ouvir e a escrita tomou conta de mim?
        Onde estavas tu quando encontrei a mulher da minha vida e a deixei escapar por não saber lidar com a pressão do par?
        Onde estavas tu quando me formei e olhei ao redor à tua procura, sem te encontrar, sem sequer conseguir inventar a tua presença?
        Onde estavas tu quando eu precisei de falar sobre o meu futuro?
        Onde estavas tu quando senti saudades de ti?
        Onde estás tu quando a minha vida se desfaz com o tempo e o que eu mais preciso é de te chamar pai e ver-te de mão dada comigo, sentado num banco de jardim, com tinta verde na camisola, a fazeres do meu riso o teu propósito?
        Onde estás tu quando o meu irmão perde o melhor amigo e chora por dentro porque tu não o ensinaste a chorar com a dignidade de quem sente a partida de alguém?
        Onde estás tu quando chamamos por ti e tu não ouves, partindo para outro lugar.
        Onde estás tu meu pai que nunca o foste e ainda assim, no mais recôndito lugar da minha memória, estás mesmo ali, curvado para os teus filhos sem idade, abraçado ao futuro que agora começa, junto daqueles que tu sempre amarás.
        Onde estiveste, onde estás, onde estarás, onde estaremos.

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