Um encontro à chuva



Era uma chuva de tempestade que incidia fortemente sobre os transeuntes, gotas de um mundo gigante, amigos de ventos de odisseias, romarias de Inverno profundo, era um dia de Inverno puro, um Inverno desgraçado.
        A ganga das minhas calças era o peso de muitas vidas, as botas castanhas engrossadas pelas minhas caminhadas eram terríveis, e o casaco, o meu casaco subia muito além da água que esgotava os meus passos e os meus braços e as minhas pernas e o meu temperamento. O Inverno empurrava-me para um abismo enregelado e eu temia o momento a seguir.
        Corria. Eu corria contra os meus olhos. Eu caminhava para casa onde sabia que estaria sozinho. Eu corria ansioso quando bati em alguém. Esse alguém foi cair à minha frente. Ao cair, durante a frenética queda que clamava dor, o alguém deixou cair um livro no rio, no rio criado pela chuva de Inverno.
        Agachei-me para segurar a mão e o que pudesse ajudar. E na subida, quando as pernas já se equilibravam, pude ver os olhos, os meus olhos puderam ver os olhos. Eram uns olhos clamorosos, penteados pela frescura da chuva e da queda. Pedi desculpa. Desculpa. Pedi desculpa todas as vezes quanto a minha fascinação. Desculpa. Desculpa. Desculpa.
        A minha fascinação olhava os olhos, olhava o olhar, olhava as pupilas, fitava todo o redondo que orienta o campo visual. Num momento estanque, projectei um dia novo…
       
(estou no carro a conduzir e tu tens a tua mão delicada sobre a minha coxa rude, vejo a estrada e vejo que estamos bem, viajamos, percorremos os caminhos do conhecimento, somos os dois e o Verão está lá fora a acenar, a pedir um Mar, a pedir uma praia, a pedir um gelado, a pedir um passeio em abraços, a pedir um beijo num fim de tarde, a pedir uma esplanada e mais beijos.)

Ainda vejo a minha fascinação a olhar os teus olhos…

(estamos numa biblioteca, tu escolhes poesia, eu escolho prosa, escolhemos ambos um romance, lê-mos filosofia, beijamo-nos no intervalo de uma quadra, percorremos os corredores de história, beijamo-nos no intervalo de cada corredor, estamos numa biblioteca e o silencio é tão calmo quanto os nosso passos em alcatifa, o silencio desaparece quando folheamos as palavras em português, julgamos um beijo poético e sabemos o nosso futuro, ele é nosso, ele é tudo o que queremos, o futuro está num livro que escrevemos)

Apanho o livro que deixas-te cair no rio de chuva. A capa está perdida de molho, a tinta escorre e faz desaparecer algumas letras, talvez sejam palavras incólumes, palavras inocentes. Entrego-te o livro e vejo que é Proust. Os meus olhos encontram novamente os teus…

(estamos deitados na cama, os lençóis estão dispersos, desgovernados pelo teor de todo o nosso diálogo, os nosso corpos suam imaculados, sentimos que os nossos corpos foram beijados, eu sinto o sabor da tua língua no meu peito, tu sentes as minhas mãos por toda a parte, toca ao longe uma música de sexo, eu sinto o teu seio algures nos meus dedos, o barulho que fazemos é de amor e de sexo, eu que é a nossa cama e que fomos nós que desgovernámos os lençóis, eu sei que te beijo todo o corpo e a cada respiração preguiçosa, eu sei, eu sei que te amo no expoente oportuno da loucura)

Desculpa. Peço-te mais uma vez desculpa por ter estragado Proust, por ter molhado a tua roupa, por ter-te deixado cair. Digo o meu nome e tu sorris ao dizeres o teu nome. Somos dois nomes e podíamos ser amigos. Eu recebo o teu nome e volto à minha fascinação…

(estamos num restaurante de namorados, a mesa foi posta sem velas, tu nunca gostaste de velas, temos vinho em cima da mesa, eu nunca gostei de vinho, por baixo da mesa a minha perna sente a tua saia destemida e um sapato descalço perdido no meu gémeo, tenho p prato cheio e intocável, não tenho fome porque assim se sentem os apaixonados, a paixão rouba a fome, a minha paixão está a um metro de mim e eu quero-a, o tempo está parado, eu peço-te o dia de hoje e tu garantes que amanhã vai ser melhor, somos perfeitos, sabemos a nossa totalidade)

Colocas o livro junto ao teu peito, apertas a capa e sentes um estremecimento dentro de ti. Eu estou encharcado, mas não quero sair dali, não quero estar em mais lado nenhum. Saboreio a chuva que chega à minha boca, peço desculpa. Tenho uma imensidão por ti e demonstro num pedido de desculpa.

(estou na praia, com a minha toalha por cima da tua, um pouco sumida, garantindo que somos amantes, estou a chegar vindo das ondas e vejo-te deitada a ler Proust, desvio o livro e encontro a tua mão, encaminho-a para as minhas costas de sal, deito-me sobre ti, és agora a extensão do meu corpo molhado, o teu pescoço é agora a minha boca)

Os teus dedos estremecem enquanto seguram o livro, os teus dedos são a minha perdição, o teu corpo desconhecido é a razão daquele momento. Peço-te desculpa. Desculpa. Peço-te desculpa quando vejo que o teu anelar esquerdo tem um brilho que me entristece. Peço desculpa e deixo-te voltar costas. Mas tu permaneces à minha frente, à chuva, ao frio, permaneces e olhas para mim.

(encontras-me na rua, ao acaso, encontramo-nos num encontro que me faz cair, eu levanto-me com a tua ajuda e o meu livro está no chão, Proust está no chão e és tu que o apanhas, e ficas especado a olhar para mim, pareces querer beijar-me, parece que queres abraçar-me, parece que me amas, devolves-me o livro e eu fico com Proust ao peito, tenho o livro no peito e não consigo esconder o brilho no meu anelar esquerdo, quero esconde-lo, quero atirá-lo fora, quero ser livre e perder-me como ordena a inocência, mas tu ficas especado e não sabes dizer nada)

Pedimos ambos desculpa. Desculpa. Desculpa. Virámos em esquinas diferentes e nunca mais nos voltámos a ver.     

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