Ser pai




        Guilherme via televisão, ou fingia ouvir os ruídos da caixa mágica, na verdade ensaiava a leitura de um novo livro que comprara. Preparava o virar da capa dura e chamativa, de letras em relevo a suscitar um mundo. O livro dava pelo nome de “Renegociar a alegria”, e descrito por um qualquer crítico como: “…tremendo o jeito de espaçar a narrativa, inquietando o leitor com um declive de amarguras e um culminar de interrogações…”.
        Há muito que se habituara a não ligar às críticas que ia lendo de livros, pelo gosto dúbio dos seus agentes e porque gostava de saborear a história com um arranque em branco, sem saber o que lhe esperava.
        Mas ali sentado, num sofá individual que tinha há muito as suas curvas vincadas, sentia-se num conforto inigualável. No fundo da sala que o aconchegava, estava a sua companheira.
        De silhueta exagerada, pelo estado avançado de gravidez, olhava a rua. Do aquecido daquele espaço seu, imaginava o frio que se fazia sentir lá fora, trocava as voltas ao ambiente em que se encontrava e julgou por breves momentos poder sentir o nariz frio de um vento que não entrava pela janela fechada.
        Guilherme, pousou o livro na mesa que acolhia tantos outros com títulos mais famosos, como “Até sempre”, “Na praia de Chesil”, “O velho que lia romances de amor”, tudo livros lidos e relidos por si e pela sua companheira de vida. Juntando agora mais um ao molho, deixou-se por ali, a contemplar as páginas já amareladas de alguns.
        A companheira instintivamente, dirigindo o olhar na direcção de Guilherme, exclamou um: - Já o terminaste?
        Sorriu, e determinado a ludibriar a companheira com uma brincadeira pequena, respondeu com ar de intelectual nobre: - Claro, em três tempos leio este e “O capital” de Marx.
        Ela já estava habituada ao seu humor repentino, e sem se deixar fazer tristeza soltou uma gargalhada. Voltou a si e ao que a entreterá até ali, o olhar pela janela, mas desta feita, fazendo mesmo deslizar a vidro que a separava do mundo lá fora. Assim ficou largos tempos, a receber o arrepio do lado de fora que ia trepando dos seus pés ao seu nariz, fazendo-se notar na mudança de cor. O nariz estava agora como imaginara há pouco, avermelhado e gelado.
        Guilherme entretido sem nada para fazer, fazendo uma pesquisa sem olho pelos canais de televisão que iam passando.
        Ouviram-se gritos ensurdecedores, mas Guilherme ainda não os ouvia. A sua companheira gritava como loucos na rua, e só quando caiu ao de leve no chão, em cima de uma carpete peluda, é que ele deu por ela a choramingar de dores.
        Sem demoras, acorreu para perto dela e segurando-a pelo pescoço, com uma delicadeza que não era habitual nele, enquanto a acariciava as lágrimas de dor perguntava-lhe: - É o momento?
        Ela não conseguia falar, a alegria era imensa e o êxtase de estar ali tão perto de seguir uma nova viagem, desta vez com o regresso a três, dava-lhe o sorriso perdido por entre tantas lágrimas. E foi assim que lhe respondeu: - Sim, acho que ele está pronto para vir para junto de nós. Agora despacha-te e leva-me para quem me possa ajudar.
        E ajudou-a a levantar-se.
        Caminhou com ela para junto da porta e sentou-a na cadeira que se encontrava abandonada no meio do hall de entrada.
        - Mas o que estás tu a fazer? Ele vai nascer, vamos embora que estou cheia de dores e preciso do médico…
        Calmamente e contrariando o estado de espírito da companheira, Guilherme largava uma calma imensa, tranquilo e de passos vagarosos virou as costas e caminhou para a casa de banho. O que irritou ainda mais a companheira.
        - Tu estás louco? Tens noção que estou por segundos? Vem embora, traz a chave rapidamente e leva-me…
        Parou e voltou atrás no seu percurso, dirigindo-se agora à mulher que se tornara única para ele. Quando já perto dela estava, tão perto que já lhe sentia o hálito quente que o apaixonara vezes sem conta, passou-lhe uma mão pelo rosto de lágrimas secas e deslizou os dedos encolhidos pela face toda, era o seu jeito de dizer Amo-te muito. E foi sem brincadeiras, com o ar mais sério do mundo que do mais fundo de si respondeu com uma sinceridade terna: - Não quero que o meu filho me veja pela primeira vez com esta barba e com este mau aspecto. Para que ele desde o primeiro dia perceba que vai ter o melhor pai do mundo.

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