A Praceta das Crianças




mudei-me para a Praceta das Crianças. aqui tudo se torna possível desde que se aprenda a ver sem olhos. desde que me mudei que acredito em tudo.

à porta da minha casa já encontrei o Hemingway a cortejar uma mulher de quarenta anos. como explicar. o Hemingway de tronco nu à chuva, com uma flor desenhada no bloco de notas a jurar um amor de segundos. a acariciar a cintura da mulher de quarenta anos e a dizer-lhe que a flor foi desenhada por dentro dela. e ela, a mulher de quarenta anos a acreditar naquilo tudo e a não estranhar a chuva apenas no tronco do Hemingway. o bloco de notas seco e a flor de um lado para o outro, a encontrar as pétalas no rebordo do papel, quase a querer sair, a fugir.

aconteceu mesmo aqui na Praceta das Crianças. a prova está na barba do Hemingway, despenteada, a cortejar a mulher de quarenta anos que nem deu pela minha presença da janela. nem mesmo quando o encantador do Hemingway me pediu fogo. nem mesmo quando eu mesmo fui buscar fósforos para lhe oferecer. nem mesmo quando se viu de mão dada, ela, uma mulher de quarenta anos nas mãos do escritor das mulheres insatisfeitas.

e tanto mais tem acontecido.

quando uma noite cheguei a casa, tinha o Chet Baker sentado no chão da sala, numa tristeza profunda, escondida por trás de um fumo estúpido de cigarros apagados no tapete. o mesmo Chet Baker que sonhei ouvir. sentado a fumar e a escrever no chão com uma faca desafiada.

- You remind me of everyone.

não me assustei nem um pouco. afinal esta é a Praceta das Crianças. juntei-me ao Chet Baker e falei-lhe da falta que as palavras fazem. perguntei-lhe como se vive sem amor. perguntei-lhe muitas vezes como se vive sem amor.
e o Chet Baker a responder com cigarros entre os dedos. a mão direita cheia de cigarros. todos acesos. fumo por todo o lado e a janela fechada. não fosse o Hemingway querer também ele entrar e trazer a mulher de quarenta anos para se juntar a um concerto solitário.

escusado será explicar de como o Chet Baker ficou mudo a todas as minhas perguntas. nem mesmo quando lhe ofereci o mais fino recorte dos whisky. ficou-se a mostrar dois dedos a ordenar pedras de gelo. a que eu acedi prontamente por trás de todo o contentamento que me infectava a sua presença em minha casa.

o mais estranho aconteceu há duas manhãs atrás. acordei ao lado da Edie Sedgwick. estava completamente embriagada. permanecia incrivelmente bonita e nua. as pernas cruzadas perto da minha barriga. não me recordava de ter adormecido ao lado de tamanha beleza. mas esta é afinal a Praceta das Crianças e aqui tudo acontece sem a explicação dos livros da exactidão.
aproveitei a companhia e os beijos que me ofereceu. descobri com as mãos e com a boca que o amor nasce da pele. encontrei lugares que julguei perdidos do prazer e juro que a Edie Sedgwick teve algum prazer com as minhas habilidades.

o pior veio depois.

as mulheres bonitas são tristes.

quando quase adormeço no pescoço da Edie Sedgwick, acontece uma conversa estranha. ela pergunta-me coisas que não sabia responder. que não sei mesmo responder.

- achas que quando eu morrer, o meu nome vai permanecer na parte de trás do bilhete de identidade do meu filho? será que existimos apenas enquanto alguém é capaz de nos lembrar? se eu morrer, será que posso morrer feliz? se morreres, será que me podes prolongar nos teus cadernos, nos teus escritos?

e eu sem responder. a vestir-me à pressa. a esquecer roupa pelo caminho. a fechar a porta de casa. mesmo sabendo que o Chet Baker haveria de entrar no meu quarto para se deleitar com a Edie Sedgwick, que haveria de saber responder a todas aquelas perguntas. que haveria ele de compor alguma musica que pudesse prolongar a beleza que brotava da pele.

estava já meio vestido. na rua. e quando pensava que estava a acordar de um sonho qualquer, olhei para a parede do prédio em frente. no amontoado de azulejos azuis, consegui ler: Praceta das Crianças.

e percebi que não estava a sonhar.

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