Tristeza





acabei de perceber a tristeza. 

na minha companhia, do parapeito da janela, acabei de perceber a tristeza. custou-me tanto perceber esse fundo por outra pessoa que tenho vergonha de conversar. 

o senhor de cabelo forte e negro. de gabardine comprido e negra. de botas bélicas e negras. de rosto carregado por um passado não escrito, negro. 
passeia-se debaixo do meu parapeito e olha-me como se fossemos os únicos compreensíveis. anda sobre o chão de alcatrão e vai em direcção aos caixotes verdes do lixo. pára por segundos no espelho partido que está no chão, deixado por algum vizinho vaidoso. pára e não consegue olhar porque tem medo do outro lado. o medo cortado nas laterais do espelho, a mostrar um jovem que não acontecerá mais. 

o senhor de cabelo forte e negro, parado pelo espelho. demasiado empobrecido pelas investidas da estrada-vida.

logo prossegue por entre os caixotes verdes do lixo. abre com as mãos porque o nojo não lhe cabe na pele. os outros pisam o ferro para abrir o caixote. ele abre com as mãos porque a agonia há muito se foi.
colocando o corpo inteiro dentro. no escuro, onde se mistura o negro de todo ele. procura por memórias. as memórias dos outros vivem sempre no lixo. mas o senhor de cabelo forte e negro a vasculhar a fome no escuro. 

observo-o. ele sabe que estou aqui ao lado. fala sozinho para que eu o ouça. não reclama. baixinho, não reclama porque as nódoas já lhe furaram a pele. anuncia que não encontrou nada de jeito, mas baixinho porque pode acordar os pesadelos.

essa tristeza que encontrei vive adormecida nos pesadelos. este homem não dorme para não sonhar. está acordado quando as pessoas adormecem. 

depois de não encontrar o que procurava, despede-se dos caixotes como se pessoas. 

- amanhã dizes-me outro segredo?

e desce novamente a estrada de alcatrão. desaparecendo por entre a algibeira da noite. 

e no meu parapeito, percebo a tristeza. colocada inteiramente nas botas bélicas do senhor de cabelo forte e negro. não era a fome das saudades. era muito mais do que isso. não era a esquizofrenia de conversas abandonadas. era muito, muito mais do que isso.

percebi a tristeza quando o espelho, quando um jovem que não acontecerá mais. uma tristeza determinada pela falta dos outros, os que se perderam na miséria, sem terem descoberto a inesgotável fonte da literatura.

fechei a janela e disse baixinho, sem acordar os pesadelos:

- nunca adormeças onde os outros acordam. 

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