Espero-me envelhecer



sei que preciso de envelhecer. é sempre preciso envelhecer. e eu espero-me para o tempo. nessa espera que os outros sempre escolheram abandonar. eu espero-me porque haverá um momento e uma oportunidade para julgar que também tu te esperas.
guardo na gaveta da entrada uma moldura sem fotografia. uma moldura decorada sem moda. apenas um pedaço de metal brilhante que guarda um papel sem fotografia. está guardada na gaveta da entrada porque ali os amigos nunca desconfiam o que se esconde. nem é preciso chave para a gaveta porque o maior segredo vive sempre dentro daquilo que desconhecemos. 

espero-me envelhecer. trabalho no escritório de sempre. ao lado da minha secretária o mesmo senhor de gravata de padrões primaveris, a suar pela pele inteira durante a manhã e o resto da tarde. uma pessoa que nunca se devia conhecer. que imagino todas as noites a deitar-se ao lado de um cobertor vazio de gente e pleno de cheiros, de imundice. um corpo pesado que se senta todos os dias ao lado da minha secretária e que teima em planear um charme barato para o meu decote escondido. 
por vezes, na entrada da manhã, vomito na casa de banho. vomito para provar a mim mesma que o cheiro talvez seja invenção minha. mas depois, o senhor permanentemente sentado, a coçar os calcanhares e o charme.

espero-me envelhecer. a sair do trabalho para ir buscar o meu mais pequeno ao infantário. a fingir-me comovida porque as mães se comovem umas com as outras. entro no corredor onde o Principezinho me diz coisas bonitas. um corredor demasiadamente comprido para as crianças que nunca encontram o final. demasiado estreito para as mães que comovidas, encostadas às paredes, a esconderem a tristeza de uma vida que nunca foi um sonho, de quem pensou um futuro onde a felicidade vive. 
dou à mão ao meu mais pequeno e nem dou conta que falámos até ao carro, que conversámos na viagem de carro até casa, que silenciámos do carro até à porta de casa, que sorrimos durante o trajecto todo, que nos conhecemos mais um do outro que de nós próprios. e o meu mais pequeno a dizer-me, antes de se descalçar:

- se eu não me conheço, também não te conheço.

espero-me envelhecer. a ouvir o meu mais pequeno a repetir uma frase que talvez o irmão tenha lido nos livros de Umberto Eco. a repetir tantas palavras porque o irmão tem literatura nos dedos. os dedos que pertencem a mãos que nunca ousaram ler o teu livro. 

nunca deixei ninguém ler o teu livro.

espero-me envelhecer. enquanto preparo o jantar. enquanto faço o esparregado que me lembra sempre de ti. enquanto coloco os pratos na mesa e me lembro que nunca nos sentámos à mesa. enquanto sirvo o prato ao meu mais pequeno e ao irmão, e me lembro que nenhum deles ouviu falar de ti. enquanto os vejo a comer e me esqueço que o meu marido continua sentado entre eles, a sufocar com a minha despedida que tarda. enquanto lavo a loiça e me esqueço que o meu marido está sentado na mesa, com a eterna desconfiança que será hoje que não me deito na cama.

espero-me envelhecer. quando os vejo sentados na sala, a ver televisão. o meu marido perdido e entretido com programas que sempre me deixaram mal disposta. o meu mais pequeno a olhar para o irmão, sempre a olhar para o irmão e a aprender tudo pelos gestos. o meu mais pequeno a ter a atenção no irmão que sublinha frases extensas de Balzac. 

"Oh! Gritarei a verdade mesmo no meu silêncio." 

espero-me envelhecer. vejo o meu mais pequeno e o irmão a conversarem no escuro do quarto. não sei do que falam. talvez seja àquela hora que os papeis se invertem. que o meu mais pequeno leia Proust ao irmão. os dois a adormecerem como vagabundos da literatura. os meus dois filhos a adormecerem sem a noção de que na gaveta da entrada uma moldura sem fotografia.

espero-me envelhecer. caminho para a sala e esse trajecto tem muros. enquanto caminho sei que a linguagem do tempo existe. chego à sala e vejo o meu marido ainda sentado a ver televisão. mantém o corpo muito jovem. continua com uma tamanha falta de sensibilidade. e é muito bonito. ainda é muito bonito. mas isso já não me chegou. a linguagem do tempo prometeu-me coisas que não cumpriu. o meu marido está sentado no sofá, hoje, como ontem. igual. há vinte anos atrás o mesmo corpo e a mesma falta de sensibilidade. 

espero-me envelhecer. volto ao corredor. os muros já não estão erguidos no caminho que faço para trás. o meu corpo tem ordens interiores para se despedir. abro a porta de casa e a rua perdeu as memórias. vou devagar pelo passeio. como prometido, os meus pés a serem de uma menina que ainda sonha. a andarem na vontade que sempre tiveram de fugir. 

espero-me envelhecer. enquanto caminho pelo passeio, as minhas mãos seguram a moldura sem fotografia. e a cada passo que dou o brilho da moldura torna-se candeeiro. os meus passos a crescerem de comprimento. e a moldura cada vez mais brilhante. a luz aberta, a indicar o objectivo dos passos. 

envelheço. subitamente envelheço os anos todos que estive longe de ti. sou uma menina muito velha com uma moldura brilhante na mão. uma moldura que brilha e que tem uma fotografia. uma fotografia ao contrário que agora se descola e se mostra. uma fotografia de quando a juventude nos escolheu. 

estou velha. eu sou uma menina muito velha que te encontra. e tu como o tempo te guardou. que não soubeste envelhecer. que não soubeste esperar-te envelhecer. olho para ti e a mesma sensibilidade dos livros. a tua pele a sorrir na luz da moldura. sem precisares de falar. a escreveres os teus poemas com a tua boca parada. e o teu beijar destemido, a saborear a amargura de uma nostalgia que sempre te reconheci. 

- olha o que o tempo nos fez amor.

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