O quarto




estou a despedir-me do meu quarto de sempre, neste onde estou agora mesmo a escrever e de onde escrevi tudo o que alguma vez consegui produzir. o meu quarto de sempre. 

olho para a decoração, intacta desde o primeiro quadro. nunca mudei grande coisa no meu quarto. foram chegando muitos livros com o tempo. mas a decoração igual. a mesma fotografia de Ernesto Ché Guevara, com uma expressão de preocupação e cansaço. uma pintura cubana. uma matrícula ainda mais cubana. uma caricatura de mim quando muito novo, ainda com cabelo e orelhas extremas. uma fotografia do futebol, do tempo em que nada mais contava. uma cortiça abandonada por fotografias, arrancadas no dia em que me deixaste. uma cortiça que devia ter sorrisos dentro, em volta. uma cortiça que agora apenas uma carta que nunca terminei de escrever. 

e à volta do meu quarto, pouco mais. uma bandeira cubana, com o cheiro e a terra onde muito de mim ficou. 

o meu quarto é mais ou menos isto. um grande armário de roupa. muita da roupa que se esconde, nunca mais a vesti, está ali para ali escondida porque sempre fui muito sentimental com as coisas, sempre me custou deixar as coisas partirem. por isso o armário cheio de roupa que não me serve. 

aqui na secretária, onde me sento a escrever, um Imac que é recente. muitos livros espalhados, sem cronologia. livros que vou deixando pelo quarto, para ler quando a vontade se constrói. Italo Svevo. Ondjaki. Agualusa. Joaquim Pessoa. livros que parecem renascer sempre que os meus olhos os encontram. tambem alguns filmes. os que cresceram comigo. O Tempo Que Resta. Vanilla Sky. Uma História Simples. Lost in Translation. Casablanca. Conversas Vadias - Agostinho da Silva.

é a desarrumação da minha secretária, que me viu licenciar-me como professor. a percorrer um mestrado como professor. a estudar poucas vezes e ainda assim as notas a saírem com rigor. trabalhos inacabados em que me faltou sempre mais vontade. sempre a preguiça de não querer terminar. a preguiça.

mas o meu quarto a ter o orgulho todo na estante dos livros. uma estante que começou com vergonha. que se foi enchendo com o tempo. com pequena literatura. depois, com as voltas incriveis da vida, a socorrer-se dos clássicos, da filosofia, da educação, dos contemporâneos. a falar em língua portuguesa como se não houvesse uma outra. a língua portuguesa sempre mais bonita que qualquer outra que se possa aprender. os meus livros de Vergilio Ferreira ordenados por cores, ainda mais imortais que o autor. a minha estante que carinhosamente se despede de mim e dos livros, a ser abandonada para outro lugar que não saberá contar histórias. a minha estante cada vez mais sozinha.

e no topo do meu quarto, a minha cama. enorme. a saber mais de mim do que qualquer outra coisa viva. a lembrar-me que nesta despedida haverá sempre memórias de uma virgindade perdida, demasiado novo. memórias de o amor que jurou um sempre que sempre soube não existir. memórias de tantas noites a dormir e a imaginar que não acordaria. memórias de quem fecha os olhos na compulsiva ideia de que o amor nunca termina. memórias de toda uma juventude que não volta mais. memórias de um sonhador que nunca aprendeu a crescer. memórias minhas, apenas minhas e de quem as lembra. a minha cama, enorme. a despedir-se na última noite.

estou mesmo a despedir-me do meu quarto. não sei se algum escritor o chegou a fazer alguma vez na história. mas como não sou escritor, assumo esta despedida como um dos momentos mais tristes de todos. 

sento-me no sofá que tenho no quarto há décadas. sei a música que tenho de ouvir para despedida. Arvo Part. a orquestra do tempo que resta. é a melhor despedida que posso deixar para o meu quarto. uma despedida demasiado sentida para que não escrevesse. 

adeus. vou deixar-te para que a casa agora possa ser outra coisa qualquer. vou mudar-me para outro lugar. e vou sozinho. desta vez vou sozinho. com os meus livros e os meus escritos. vou continuar a ser aquele melancólico sem tempo. vou ser o mesmo que sempre fui neste quarto de pobre rapaz. mas levo comigo aquilo que fomos juntos. levo comigo as conversas que deixei escritas nas paredes. levo comigo as pessoas que te conheceram. levo comigo a recordação única, singular, de quando me foste apresentado. nesse dia, em que o dinheiro pouco abundava, foste pequeno, eras um quarto pequeno, mas com espaço suficiente para mim que não tinha mais ninguém.

Adeus.

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