Crónica para a minha mãe





Tenho muitas desculpas para te pedir e poucas palavras para te oferecer. Nestas andanças a que me permito, deixei cair do bolso muito do que o passado me garantiu como ideias falidas.

No princípio dos tempos quis aprender a ler. E tu deixaste-me na sala da professora Helena. Mas esqueceste-te de dizer que ela usava a régua de pau para bater nos meninos que não eram brancos. E eu aprendi nesse dia a luta de classes.

(Tenho muita pena dos meninos negros que nunca choraram com as reguadas na palma das mãos)

Foi a professora que me ensinou a ler e a escrever. Mas nem assim a desculpo. Deu-me a mais bonita ferramenta do mundo e ainda assim nunca a desculparei. Não me permito desculpar, isso seria trair os meus companheiros de escola.

Mas esquece a professora, não falemos mais da senhora. Está crônica é tua mãe. E eu só quero pedir desculpa.

Fui mau aluno. Chumbei tantas vezes quanto os dedos da mão direita. Mas as notas nunca me importaram. Eu não era estúpido e o mundo cabia todo nos meus olhos. Mas tu choravas sempre que a matemática me atormentava. E eu que nunca soube a importância das fracções nós intervalos em que enternecia em poemas pequenos para as raparigas insensíveis.

(Deviam ser poemas terríveis)

Mais tarde quis ser professor e tu disseste que sim. Disseste sempre que sim. Que acreditavas nos meus sonhos. E só por isso licenciei-me e segui para o mestrado. Fui novamente um aluno diferente. Mais uma vez as notas sem importância. Outra vez a matemática que falava outra língua.

(Por essa altura já sabias que queria ser escritor)

Deixei então a educação. Tinha sido um professor-criança que não interessava nas escolas. E fugi para outro lado, onde os adultos não me pudessem chatear. Onde o meu silêncio fosse suficiente.

(E tu voltaste a dizer que sim.)

E a minha vontade de ser escritor, de viver das palavras, de escrever o maior romance da história. A correr atrás do tempo que me fugia. A imitar o Antunes, o Ferreira, o Peixoto, o Hélder, o Andrade. A tentar ser tão bom como eles porque só isso tinha tanta importância!

(Mais uma vez o teu sim)

Agora faz-se tarde. Vivo na rua. De pés descalços e de lápis afiado. Escrevo para as pessoas que passam. Elevo as palavras em narrativas que nunca terminam. Tenho dois livros e ainda não sou escritor. Acho que nunca vou ser escritor. Mas mesmo nesta condição, mesmo assim, tenho a impressão que não te desiludi.

Nunca te vou desiludir porque me ensinaste antes de tudo o resto, de que para viver que seja de sonhos, que seja ser diferente, que seja para ser interminável.

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