Seja bem vindo a Campo de Ourique


Seja bem vindo a Campo de Ourique


(estou feliz nesta despedida.) 


ao fim de trinta anos deixo a terra onde nasci e estou feliz. não aceno ao que fica para trás porque pela frente tenho um futuro brilhante. não digo adeus aos que ficam porque também os trago comigo.


(estou feliz nesta despedida)


a minha terra tem um nome cheio de história: linda-a-velha. sei que foi uma senhora de alguma idade a quem, aos olhos dos outros, sempre se desejou a si mesma por lhe faltar outra coisa mais do que a beleza. e daí o nome da minha terra: linda-a-velha.


quando eu nasci já os meus irmão cá andavam. conversavam um com o outro na sua condição de gémeos. incompreendiam-se na sua condição de gémeos falsos. tinham já quatro anos e as culpas de terem a responsabilidade de serem os irmãos mais velhos. 


(como eu os estimo por isso.)


uma menina e um rapaz de nomes complicados. a menina muito cheia de palavras, a saírem da boca, presas nos lábios, a transformar pequenas histórias em odes, a inventar dicionários. e de lado, muito mais calado, com a prática das mãos, qual inventor, a reformular desenhos de bicicletas, a trocar quadros e guiadores, a corrigir os erros dos monociclos. os gémeos falsos cheios de diferenças e de criatividade, tudo próprio de serem crianças.


(como eu os estimo por isso.)


foram os meus irmãos que me contaram sobre a minha mãe:


- olha a mãe, cheia de arrulhos a preencher o que nos falta. 


e o eu tão timido, a saber que nunca me faltaria nada. ao meu lado a minha mãe e os meus irmãos, gémeos falsos. lado a lado numa história que durou trinta anos.


(estou feliz nesta despedida.)


dou um passo em frente e chego a Campo de Ourique. mudo-me de vez porque o amor sempre foi o mais importante. chego à minha nova casa e sublinho o que sempre pensei:


- o amor é o mais importante. 


ao olhar em redor, não vejo muitas diferenças. mais movimento, outras caras nos cafés, outros velhos a jogarem à batota no jardim, outras crianças


(como eu)


a brincarem das mesmas coisas, cheias de fantasia nos pés. 


Campo de Ourique. sempre desconheci que o futuro me traria para este lugar. mas ela é mais forte e bonita que o futuro. trouxe-me à sua porta e perguntou se queria ficar. 


(como haveria eu de não querer ficar?)


os primeiros dias são de reconhecimento. afinal mudanças assim são poucas na vida, duas ou três vezes e chega. 


(nunca acreditei naqueles que vivem de cidade em cidade. como se nenhuma lhes pertencesse e fossem vendedores ambulantes de falsa felicidade.)


Campo de Ourique. o meu novo centro de passeios. por isso talvez não custe tanto. diz-se que quanto mais poemas na cidade, mais poetas clandestinos. e é como me sinto. longe de mim saber-me poeta ou escritor. mas sinto-me um poeta da rua, quando me imagino a cumprimentar as caras nos cafés, os velhos que jogam à batota no jardim. quando me imagino a brincar das mesmas coisas de quando também eu o era, uma criança. 


mas mesmo que tudo isto seja nada. mesmo assim. tu estás ao meu lado. de manhã, enquanto acordamos, vais aumentar o volume da musica que vem da sala, talvez nina simone. depois, à mesa, durante o pequeno almoço, as torradas meio queimadas e as tuas mãos a julgarem as minhas por se juntarem tão bem. 


(como haveria eu de não querer ficar?)


ao sairmos para a rua pelas escadas, os passos grandes de um futuro que será a garantia de que a nossa escolha foi a perfeição escrita pelos poetas de rua, os poetas de Campo de Ourique. e tu vais entender que embora eu tenha trinta anos de atraso, cheguei a tempo de nunca mais voltar atrás. 


eu, tímido, sem querer fazer muito barulho na rua:


- o amor é o mais importante.

Comentários

Mensagens populares