Dormir de olhos abertos




          O Gustavo dorme de olhos abertos. Desde os tempos de berço de grade interligadas. Desde os tempos em que o colchão era acima de uma escadaria íngreme, um beliche.
            Dormir de olhos abertos sempre teve um propósito, uma razão dentro de uma razão ainda maior. Uma vontade acima de tantas outras vontades. Um significado muito além de muitas coisas insignificantes.
            Dormir de olhos abertos sempre permitiu ao Gustavo esconder quando dormia, quando acordava, quando adormecia. Sempre foi assim o sono do Gustavo.
        Quando novo, ainda na primária, nessa escola onde a natureza ainda consegue ser, o Gustavo sentava-se nos lugares de trás, sempre nas mesas mais esquecidas. Lá atrás onde a rebeldia se sobrepõem à monotonia, o Gustavo tinha a janela, à sua esquerda, como companheira. Era aí que o Mundo nascia, nessa janela tinha a montra para tudo o que era possível: o amolador de facas e a sua harmónica; os alunos que só tinham aulas de tarde; os comerciantes sem clientes; as esplanadas cobertas de caruma; os prédios de cores de séculos; o recreio; as descidas e subidas de montes grandes e proibidos; o futuro.
            O Gustavo, dentro da sala de aula, era um aluno que dormia. Sentado na sua cadeira de estudante, ele era uma negativa atrás de outra negativa. Porém, lá nos lugares traseiros, ele e a janela eram muitos sonhos. Ele e a janela eram a liberdade.
            A professora, de quem desconhecia o nome, era feita de letras e de algarismos. O quadro, negro e estragado, não era mais do que uma folha branca para ser desenhada, não com letras, não com algarismos, mas com sonhos.
            Os alunos eram ordeiros e alfabetizados. O Gustavo não queria saber ler nem contar.
            De manhã, ao entrar, cumprimentava a janela com um sorriso. Sentava-se e, passando pela professora, fixava e sorria para a janela. E era aí que tudo começava.
            Sem que fosse preciso abrir o trinco da janela, o Gustavo saltava o muro que separava a sala de aula de todas as outras coisas, e cumpria o seu dever de ser criança, o seu dever de sonhar.
            Nas suas costas, ficavam os seus colegas. Ficava a Ana Lúcia e as suas sardas inumeráveis e o beijo que nunca ousara dar. Ficava o seu primeiro beijo por dar e o pedido de casamento sem anel mas com direito a bilhete, que passava de mão em mão até chegar às mesas da frente.
            Fugia. O Gustavo como um recluso sem crime, escapulia-se pela janela, pelo muro.
            Na rua tudo era permitido.
            Uma breve paragem pelo campo de futebol feito de alcatrão. Um remate em pedras para uma baliza quase imaginária de outras pedras. Uma outra paragem pelo café do Horácio para comer um palmier recheado de forma infantil: primeiro a parte de dentro, depois a massa. Uma iguaria.
            A fuga completava-se quando o Gustavo, ainda sujo de doce, chegava ao Padrão dos Descobrimentos, sem que soubesse de História ou Geografia, sem que soubesse quem eram aqueles homens que subiam atrás de um outro homem.
            Era o sol. Sempre foi o sol.
            Sentado, quase de pés molhados no Tejo, o Gustavo entendia que ser criança não era para sempre, que a criança dentro não era eterna, que o adulto dentro era uma veia a rebentar. O Gustavo sentado ao lado do Tejo era um homem a fazer-se final, com os pés outrora imberbes, agora a aumentarem de volume.
            O dia era uma ponte enorme que separava duas terras que ele desconhecia os nomes. Nada tinha nome, somente ele e a Ana Lúcia das sardas. A professora não tinha nome. O rio não tinha nome.
            Na calçada que se distanciava, a noite fazia-se canção e era tempo de voltar à sala de aula, tempo de se sentar e esperar pelo toque de saída.
            Levantava-se e sabia que o caminho era curto, mesmo que adormecesse, o caminho seria muito curto porque os olhos iam sempre estar abertos.
            De novo o muro e a janela. De novo a cadeira, a mesa, o quadro, a professora, os bilhetes de mão em mão até à Ana Lúcia.
            O toque de saída.
            No regresso a casa, o Gustavo caminhava tão devagar como os segundos sem ponteiros. Até casa eram metros que não sabia medir. Até ao seu quarto eram divisões que nunca tinha decorado.
           
            Já em casa, quando pousava a mochila Monte Campo no chão da sala, a mãe perguntava:
            - Como correu o dia de escola?
            Não sabia responder. A mãe nunca iria entender a verdade. Os adultos nunca percebem as crianças.
            - Foi bonito. Cresci um bocadinho.
            A mãe sem entender. Os adultos nunca entendem as crianças.

            Quando a casa era já de uma escuridão prometida, o Gustavo vestia o pijama de flanela e deitava-se. E adormecia. De olhos abertos. Adormecia.
 

          Muitos anos se foram. A janela da sala de aula abriu-se cada vez mais. O muro ficou mais curto. O Gustavo começou a estudar. Deixou de passar bilhetes de mão em mão. A Ana Lúcia perdeu as sardas inumeráveis e ganhou decotes e roupas mais curtas que a idade. As sardas tornaram-se estrelas num dia de sol. A professora multiplicou-se em muitas.

            Hoje, o Gustavo gere um jornal económico. Já sabe todos os algarismos. Já lê livros de adultos. É casado com uma Ana qualquer que não tem sardas. Têm um filho. António.
            É de noite, quando se deita ao lado do filho António, que o Gustavo volta a olhar para a janela e, de olhos fechados, consegue adormecer. Porque deixou de acreditar no propósito, na razão e no significado de adormecer de olhos abertos.

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