O poeta, as palavras e o nevoeiro



Quando me apresentaram à poesia de Joaquim Pessoa eu ainda não sabia escrever. Digo escrever, mas nunca ao de saber fazer rimas populares, antes, ao de saber escrever sobre tudo aquilo que não sou, escrever sobre o que consigo roubar aos outros.
            Nesse dia não toquei no papel de um livro, de capa e tudo, não me atravessou um poema indigno. Quando aquele poeta me foi apresentado, eu desconhecia uma antologia poética. O Joaquim era um estranho corpo que tinha um rosto que me agradava, uma barba juvenil com mãos de uma delicadeza príncipe.
            Essa noite, ou talvez madrugada.
(Pergunto-me, quando é que a noite se desfaz em madrugada?)
Essa noite, ou talvez meia madrugada, ou ambas, os traços desse Pessoa que não o de muitos, entrou-me dentro, como um espectro de ambulante. Eu consegui aceitá-lo na minha alergia ao som mudo da poesia.

“Cada vez nos temos mais apenas um ao outro.”

            Era agradável. Ele dizia as minhas palavras. Mas tão dele. Eu que quase sempre me esquecia de que a poesia é permitida em qualquer lugar-comum. A poesia é sempre pertinente. No nevoeiro que esconde o que a imaginação determina, a poesia é pertinente. No intervalo de espaço que existe entre a chuva que cai e a chuva que não cai, a poesia é pertinente.

“Eu estava tão perto de ti que tenho frio ao pé dos outros.”

            Agora, neste exacto dia, está um nevoeiro tremendo. O Joaquim Pessoa aparece-me num livro branco. Diz-me 125 poemas. Não preciso de o abrir porque ele clama cabisbaixo por entre cada página por abrir.

“Por cima das palavras.”

            Sou eu que estou por cima das palavras. Sou eu que me equilibro entre a mesa e o livro em branco. Estou por cima dos 125 poemas e desejo ser essa antologia poética. Ando pelas extremidades do Joaquim, sem compreender como pode alguém ser tão limpo nesses adjetivos que nos decifram, nos limitam.
            Existe, entre mim e o escritor, um denominador comum. A palavra. É essa mesma palavra: Palavra. É essa mesma palavra que nos une, mesmo neste nevoeiro que nos cobre no tempo e nos distancia.
           
“Porque as nossas bocas acendem na madrugada.”

            Uma rapariga que está sentada perto do meu pulso, degusta um prato com cenoura ralada. A mesma rapariga não me torneia com os seus olhos, está mais interessada no Joaquim Pessoa. E eu deixo. Eu deixo apenas os olhos porque neste momento as palavras são a minha propriedade.

“Nenhuma morte apagará os beijos.”

            Ofereço-lhe a contra-capa. A rapariga aceita, na condição de não a rasgar. Um livro pode tornar-se amarelo, pode mudar de dono, pode pertencer, mas nunca se pode destruir.
            Mas invade-me agora um espírito maligno. Guardo o livro, a capa, a contra-capa. Guardo tudo no casaco preto. Esta não foi a rapariga que me apresentou o Joaquim Pessoa nessa noite, ou talvez madrugada, ou ambas.
Torno-me egoísta contra a corrente despropositada de um escritor.
A rapariga olha-me com desdém e continua a degustar a cenoura ralada. Volta o silêncio e ele retorna-me. 125 poemas que são de novo o meu capital de palavras.
Arrumo o tabaco que me esqueci de fumar. Corro para dentro do nevoeiro e dobro na esquina da imaginação.

“Nunca houve palavras para gritar a tua ausência.”

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