Até ao fim




            Passeio-me inteiro em escadas enigmáticas. Pela ordem natural das coisas, serão escadas ímpares. Estou a descer para a rua que se fecha em dois prédios da antiguidade recente. As traseiras de um prédio são a porta de entrada de outro. Uma rapariga ruiva está sentada num degrau construído de caixotes. Na mão da rapariga ruiva, uma garrafa de ginja de encontro a pequenos copos de chocolate.
            Fora de mim, pergunto se me dá licença. Sento-me no vazio que faz companhia à rapariga ruiva. Ela ainda não me permitiu, mas eu já estou sentado.
            As conversas vindas do silêncio interessam-me. Capto-as como a um pormenor que não se vê. Depois, depois aparece sempre um cigarro a transbordar de secura.
            - Provei igual em Óbidos. – Digo.
            A rapariga ruiva não possibilita a quebra de silêncio e enche dois copos de chocolate até ao rebordo. Com a palma da mão, como que a comunicar, faz-me acreditar na espera.
            - Ofélia. E tu?
            O silêncio por vezes tem uma dimensão tão própria que o mínimo ruído tem milhões de cordas a vibrar.
            - Vasco. E gosto de ginja. Gosto de Óbidos. Gosto de tudo. – Respondo no intervalo das cordas a vibrarem, quanto seguro já o copo de chocolate. Eu sou alérgico ao chocolate.
            - Gostas assim de tanta coisa Vasco? És como a poesia, ou talvez sejas a própria poesia.
            A curta bebida desliza pelo meu corpo, como sangue a percorrer a essência das minhas veias.
            - Desconheço essa palavra em mim. Mas sei o que é. E tu, que tens o nome de uma personagem de Virgílio Ferreira. Uma personagem que nasce já morta no livro e que percorre, ainda assim, todas as páginas obrigatórias do meu livro favorito.
            - Até ao fim, certo?
           
            Nunca tinha conversado sobre Virgílio Ferreira com ninguém. Ninguém percebia. Ninguém vivia nos parágrafos enormes do existencialismo literário. E agora. Sabia que a literatura não se partilha, assume-se, não se partilha, guarda-se, não se guarda. A Ofélia de Virgílio Ferreira, sentada num caixote e eu, Vasco, sem saber mais nada para além do que queria saber.

            - Qual é a tua arte Vasco?
            Sem responder, rasguei um pedaço de papel e pedi uma caneta. Debrucei-me, encolhido, na intimidade das palavras, na transparência de uma frase:

“Escolhi ser cego porque me zanguei com os meus olhos.”

            - És poeta, portanto?
            Nunca acreditei em nenhum poema. Na escola pediram-me sempre para tentar adivinhar a leitura do autor, para estudar. Nunca acreditei.
            - Não, mas gosto de palavras. Gosto sobretudo de palavras.
            De novo o silêncio. Copos entornados a quebrar. De novo o silêncio sobre nós. Quebrado somente pela voz de Charles Aznavour: Hier encore. E logo Paris na minha memória, na dela, na rua.
            - Adoro Paris. – Ela a contar o silêncio e a voz de Aznavour: Hier encore.
            - Já lá estive. Mas na idade não compreendia a vida das pessoas na cidade.
            Ela riu.
            - Alguma vez foste a Paris com um grande amor? – Ainda a rir.
            Um olhar meu que chorava um precoce: não.
            - Então nunca foste a Paris.

            Há pedaços exorbitantes de ideias que me fulminam, como se a eternidade tivesse uma linha ténue que se curva, como se as memórias futuras fossem nostálgicas, como se na cegueira ainda houvesse possibilidades de contornos, formas.

            A garrafa vazia, já pronta para deitar fora. As mãos da rapariga ruiva a segurar. Os dedos da Ofélia a segurar. As minhas mãos longe de tudo.
            A música parou. O Charles Aznavour calou-se. Parais já tão distante. Nas escadas, vindas de onde apareci, os passos de atacadores apertados de um homem. O Virgílio Ferreira a caminhar até junto de nós e dos copos de chocolate. Eu alérgico ao chocolate. O Virgílio Ferreira, breve, a acariciar a mão da Ofélia e a distanciarem-se os dois, para o caminho que tinha escrito, onde a existência nunca será eternidade. Até ao fim.

Comentários

  1. "Quais são as tuas palavras essenciais? As que restam depois de toda a tua agitação e projectos e realizações. As que esperam que tudo em si se cale para elas se ouvirem. As que talvez ignores por nunca as teres pensado. As que podem sobreviver quando o grande silêncio se avizinha."- Virgílio Ferreira


    É sempre muito bom ler-te.

    R.

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  2. as palavras, tão difíceis de encontrar para ti.
    e tu que escreves tão simples...
    mas tão do mais escondido de ti.
    parece-me tão pobre passar aqui para te dizer: gosto tanto de te ler...
    mas leio, leio-te sempre!
    e releio-te!
    porque é tão importante que nos leiam, mesmo que em absoluto silêncio.
    porque, que nos leiam e releiam, é o que importa.
    prestam-nos atenção.
    gostam de nós.
    não nos entendem [por vezes], mas gostam de nós.
    é bom, quando gostam de nós.
    então, não consegui ainda ler "Até ao fim" mas pesquisei.
    e entendi de ti um pouco:

    "o ser humano guarda sempre na interioridade um espaço que é só seu."

    beijo.
    M

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  3. Obrigado M.

    O melhor de tudo é quando alguém nos lê.

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