O dia de Natal



           Já não se monta uma árvore de Natal na minha casa. Faltam as bolas. Faltam as farripas coloridas. Faltam as luzes que piscavam. Falta a vontade. Falta a infância.
            Em tempos outros, havia a hora que acordava cedo demais e os olhos arregalavam apenas de ver que era de manhã e que o Natal chegava.
            Nessas manhãs eu levantava-me antes do meu irmão. A cama soprava-me brevemente para fora do sono e eu erguia-me como se habitasse a terra do nunca dentro do meu franzino corpo. De meias escuras, losangos desenhados, eu sabia que os meus pés eram fortes o suficiente para andarem em silêncio. Era assim que passava pela cama do meu irmão. Era assim que o meu irmão acordava. Abria os braços e a preguiça fugia porque era Natal e o meu irmão sabia muito melhor do que eu.
            Quando ultrapassava a ombreira da porta eu já não caminhava sozinho. O pijama e o meu irmão seguiam os meus passos de carga mínima. Éramos irmãos que julgavam o dia com a finalidade de saltar o tempo, de hora em hora, até ao final da noite.
            A nossa casa era grande. As dimensões faziam-nos perder o juízo. A nossa casa tinha três quartos e uma sala ainda maior. Era na sala que tínhamos a árvore de Natal. Um pinheiro fingido demais para que o Pai Natal acreditasse na nossa inocência. Mas tinha bolas. Mas tinha farripas coloridas. Mas tinha luzes que piscavam. Mas havia vontade. Havia muitas infâncias.
            De passos que passavam nos intervalos do silêncio, eu e o meu irmão íamos acordar a minha irmã mas a meio do caminho invadia-nos o esquecimento. Quando nos voltávamos a lembrar da minha irmã, já o meu irmão tinha um embrulho na mão, já o meu irmão descolava o papel de desenhos e se surpreendia com a verdade que tocava. O meu irmão nunca adivinhava o que estava para lá dos embrulhos verdes, vermelhos, azuis.
            Como espiões num jogo de crianças, a tensão era enorme. Como prisioneiros em fuga, a tensão era enorme. Debaixo da árvore de pinheiro fingido, éramos dois irmãos que procuravam o tesouro maior. Buscávamos vezes sem conta. Abríamos prendas. Abríamos as mesmas prendas oito vezes. A técnica era minuciosa. Nós éramos meticulosos. A fita-cola não nos fazia frente porque o meu irmão já percebia de reacções químicas. Ele já sabia que o quente sobre a cola descolava. Ele era o meu ídolo. Eu olhava para o meu irmão e ele era cientista.
            Quando a minha irmã surgia nós sabíamos que era ela. A minha irmã era pesada e fazia muito barulho. Nunca se preocupava com o barulho porque ela queria que nós fossemos apanhados. Entrava a falar como uma adulta:
- Não abram as prendas.
- Vou dizer à mãe.
E o meu irmão ameaçava a minha irmã com agressões infantis. Eu fazia o mesmo mas não tinha força e largava as prendas.
As manhãs eram as prendas e os desenhos animados na televisão. Só largávamos as prendas quando apareciam os intervalos, e, até nesses momentos largávamos as prendas, porque nessa altura anunciavam os nossos brinquedos. A televisão já era toda uma máquina que manipulava as crianças. Nós ainda não nos regíamos por esquerda ou direita. Éramos crianças e o mundo ainda podia melhor. As pessoas ainda eram boas apenas porque nos ofereciam coisas. As pessoas ainda eram bonitas porque nos sorriam.

Não era ainda de noite quando a minha avó terminava de fazer as filhoses. Nem era muito tarde quando eu já dissecava uma azevia.
Na casa da minha avó os sonhos aconteciam a um ritmo que as crianças não acreditavam que fosse possível. A casa da minha avó era pequena demais para tantos sonhos, para tantas prendas, para tantas crianças, para tantas pessoas.
O meu avô chegava a casa da minha avó. Agora era a casa dos meus avós. O meu avô era uma criança ainda mais pequenas do que nós. Era ele que arquitectava o Natal.  Era ele que montava uma pirâmide de prendas em torno do pinheiro.
Quando começavam a entrar as pessoas já as crianças ocupavam os seus lugares no sofá. Os adultos sabiam o seu lugar. Como se os papéis se invertessem e o mundo estivesse virado ao contrário.
Era nesta altura que o meu primo chegava. Era nesta altura que os olhos do meu primo encontravam os olhos do meu irmão. Eram sempre dois olhos a brilhar. Era um brilho sem lugar para a amargura. Era um brilho que albergava o mundo inteiro. E eles compreendiam-se naquele olhar. Eu era ainda muito pequeno mas compreendia que também gostava de ser aquele olhar. Hoje eu tenho aquele olhar.
Estávamos todos sentados. A sala era minúscula para tanta felicidade. Havia muita gente. Havia muito amor. Havia uma quantidade infinita de passado e de futuro. Naquele ajuntamento, não existiam crianças e adultos. Éramos todos inocentes sem idade.
Um a um. Os presentes eram entregues em mão. Mas só depois da meia-noite. Um a um. Os presentes eram entregues ao nome que correspondia. Mesmo quando não estava certo. Mesmo quando ofereciam um playmobil à minha avó. Mas era bonito. Tudo era demasiado bonito a partir da meia-noite. Até o Pai Natal ébrio que usava a barba na testa. Até os embrulhos mal embrulhados. Até as meias brancas de raquete que a minha avó nos oferecia. Tudo era bonito.
Eu e o meu irmão já estávamos acordados há muitas horas. Mas o dia podia ser uma história interminável que nós seríamos sempre um sono que tardaria em chegar. No canto da sala, éramos três. Eu, o meu irmão e o meu primo. Bernardo. Vladimiro. Gonçalo. No canto da sala víamos a pirâmide de prendas a ser destruída pelo Pai Natal ébrio. Fazíamos contas à vida e calculávamos quem faltava ainda receber prendas. Faltava sempre alguém. Havia sempre algo para receber.

Mas a noite terminava. Tinha de terminar. O meu primo e o meu irmão ainda tinham o brilho no olhar. Eu ainda queria ser aquele brilho. O Pai Natal estava ainda mais ébrio. A minha avó continuava a servir filhoses e azevias.
O regresso a casa era de uma tristeza profunda. Como se o amanhã não fosse acontecer.
Pousava as prendas todas no quarto. E antes mesmo de ir para a cama fazia uma última vistoria pelos sacos, pelas caixas, pelos brinquedos. Ousava brincar ainda antes de dormir. Mas o pijama de flanela novo que a minha avó nos oferecia era o único brinquedo possível naquela madrugada.
Enquanto eu e o meu irmão nos vestíamos de flanela e meias brancas de raquetes, não olhávamos para a cara um do outro. Enquanto nos deitávamos na cama não olhávamos para a cara um do outro.
Quando a luz se desligava pelas mãos da minha mãe nós sabíamos tudo.
O meu irmão sabia que eu iria chorar por mais um dia terminado.
Eu sabia que o meu irmão ainda guardava o mesmo brilho nos olhos.
Nós sabíamos que o mundo terminava.

Comentários

  1. Poça que saudades!!!nestes minutos em que li o texto,voltei a sentir tudo o que escreves,incrivel...tempos que nao voltam

    da tua irma

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