A casa



    Abro a porta, colocando a chave na fechadura. Sim, com a chave que te roubei no outono. Viro duas vezes com o barulho necessário para que alguém que nos tenha sobrevivido seja acordado no seu interior. Abro a porta.
    Dou um passo curto e tenho a parede da entrada a dizer-me que só tenho dois caminhos: esquerda ou direita. Conheço tão bem estes dois caminhos que me assusto a pensar que tenho de fazer uma escolha. Foi sempre assim, nesta casa aconteceram sempre escolhas desnecessárias. Ficas. Partir. Ficar. E eu quis sempre ficar, nem que fosse atrás da porta, para ouvir o silêncio dos teus passos de um lado para o outro.
    Escolho andar para a direita. Todo o corredor está despido. Nem uma réstia dos teus dedos nas paredes. As paredes brancas, nem sequer uma mancha que me jure que te viu ontem. Nada. A esperança de chegar ao sítio que era o lugar da sala. A nossa sala, onde os livros diziam os bons dias e se despediam nas noites. A estante dos livros que o teu pai colecionou e que sempre te deixou ler. Enciclopédias que te prometia todos os dias que haveria de ler, de fio a pavio, sem esquecer vírgulas. Uma estante preta que guardava a biografia do Ché, a insustentável leveza do ser, e o livro das respostas, aquele livro que liamos deitados em cima um do outro, a fazer questões e ansiosos que o livro nos guiasse para um futuro em que tudo seria mais fácil. Vamos ficar juntos para sempre? Tu amas-me? Eu amo-te? Um livro que nos respondia sempre em jeito de promessa adiada.
    Espreito para o início da sala. A estante preta está numa solidão doentia, faltam-lhe os livros. Uma estante preta sem livros é uma criança órfã de felicidade. O pó faz o seu papel e também ele só. A sala inteira sem a nossa vida. Nem o quadro com a fotografia abismal sobe as paredes, também elas perdidas na memória em que tinham falhas de tinta e restos de pregos. A sala era tão bonita quando entrava por ali dentro a primavera dos nossos beijos, quando te passeavas nua a ferver a água no fogão. Agora não resta nada da tua nudez, nem um pouco de nada. A sala é tão menos bonita. A mesa curta que decorava o centro, não existe mais, nem os copos que ali deixávamos, semi-vazios. Não reconheço sequer a janela que iluminava a paixão que inventávamos sempre, a qualquer hora do dia, para nos saborearmos mais um pouco. E deixaste o frigorifico aberto, desligado é certo, mas está aberto, talvez para que eu perceba que desta vez não vais mesmo voltar.
    Abandono a sala sem um acenar. Não há despedida possível quando todo eu nasci naquele sofá agora deixado para trás. O meu amor escreveu-se tantas vezes nas lágrimas que deitámos fora, naquele sofá que nos conhecia melhor que qualquer poesia vagabunda.
    Fujo a correr para o outro caminho. Mas a meio encontro a banheira. E onde está a confusão de shampoos? E o que terá acontecido as coisas coloridas que não sei agora o nome, aquelas que eu reclamava que me arranhavam a pele. Mas eu gostava tanto quando eras tu que arranhavas a minha pele para disfarçar o gel de banho de côco, o teu sabor preferido. É tão fácil para mim ver-te entrar nua pela banheira, sem antes me atirares com um copo de água gelado, só para que eu gritasse e tu soubesses que existiríamos sempre nos sorrisos que tínhamos em comum. Entravas devagar, enquanto eu tinha gel duche nos olhos, entravas sorrateiramente e nem respiravas para que fosse surpresa. Eu de olhos fechados a saber que entrarias sempre depois de mim no banho, que querias a água sempre mais quente. O teu corpo sempre roçou a perfeição que queria escrever. O teu peito comunicava comigo sem palavras. As estrelas que desenhavam a tua barriga eram um tridente que eu sonhava segurar com ternura. Mas agora a banheira secou. Nem uma gota de água a cair. Nada. Só as saudades.
    Continuo o percurso até ao quarto. O nosso quarto que já não é o nosso quarto, já não é sequer um quarto, são algumas paredes que se desfazem pelo tempo desprezadas. Será que a cama voou pela janela à nossa procura? E as mesas-de-cabeceira que nos roubavam os livros. Levaram tudo. Nem um pequeno rasto do secador que guardavas, o secador que eu adorava ver-te pentear os cabelos pela manhã. Acordavas sempre mais cedo e eu ficava cheio de delicadezas a ver-te, a despachares a manhã numa rapidez que te invejava. Sempre foste muito bonita de manhã. Até o teu cheiro pela manhã era agradável. Todas as manhãs eram intermináveis e eu poderia morrer no fim das manhãs, morreria feliz porque te guardava. Mas a cama levou tudo. As marcas históricas das dentadas do Cuba. Eram as obras-primas do Cuba, esculpidas pela vingança de gostar tanto de ti. Nem isso a cama deixou. E o quarto sem ser quarto, a saber-me tão amargamente que nem reparo que as tuas roupas abandonaram os armários, sem esperarem pelas minhas camisolas, pelas minhas calças. As portas dos armários estão despegadas e nem um vulto de ti a vestires-te, nem um vulto de mim a amar-te pelas manhãs. Estou tão triste que as lágrimas choram lágrimas. Estou tão triste que nem reparo que o espelho continua na parede. Foi a única coisa que o quarto, que não é quarto, guardou. Olho estranho para o espelho e vejo-me com a cara mais triste do mundo. Ao ver o meu reflexo, percebo que envelheci. Eu envelheci como sempre foram os meus pesadelos: tristes. Estou tão velho que os meus olhos não conhecem as rugas das mãos. Estou tão velho que me esqueci que envelheci estes anos todos. O meu reflexo no espelho são anos de solidão acompanhada. Anos de desenganos, de sabedoria enganadora. Envelheci e só no reflexo percebo que os livros me fizeram ainda mais velho. Nesta casa que foram os meus sonhos contigo, não couberam os textos que agora quero escrever nas paredes. Esta casa foi a nossa casa e eu demorei tanto tempo a perceber isso.
    Deixo o meu reflexo no espelho e olho para o chão. Uma folha caída no chão. Uma frase que nunca me foi estranha: I love us. E a imagem de uma estrada sem término, um rapaz de costas, numa escuridão tremenda. Pego na folha e reparo que um lápis de cera se encontra perdido aos meus pés. Um lápis de cera encarnado.
    Olho para as paredes e descubro que posso morrer de outra forma. Olho para as paredes e sei que nunca fizemos amor nas paredes. Com o lápis de cera encarnado na mão, olho para as paredes e começo a escrever. Começo com uma frase: o amor é bonito porque tu existes dentro de mim. E continuo a escrever. Palavras. Escrevo sem perceber que estou a morrer. A cada palavra morro mais um pouco. A cada palavra percebo que nunca mais vais voltar. A cada palavra percebo que as manhãs nunca mais serão intermináveis.
    Morro devagar. Morro devagar. Morro devagar. Morro devagar e a luz traz-me de novo a primavera dos teus beijos. E eu acredito finalmente que a felicidade nunca se esqueceu de mim.

Comentários

  1. Extasiante a forma como descreves o sofrimento de amor. É muito verdadeiro. Parabéns pela tua escrita. Continua.

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  2. Porra estou toda arrepiada...já sofri a mesma desilusão mas nunca consegui descrever por palavras somente em sentimento...ta espectacular já li todos que escreveste e este sem duvida o melhor e mais sentido...acredita que isto é só uma fase e que vais voltar a amar dessa maneira tão bela.amo-te mano

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  3. Está de cortar a respiração...

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