Damião e Beatriz



    Vou chamar-te Beatriz. Oferecer-te um novo nome para que os outros não saibam o que só nós sabemos. Vou chamar-me Damião. Reclamar um nome estranho para que os outros nunca desconfiem que gosto verdadeiramente de ti.
    Era de noite em Odivelas e as escadas estavam sentadas debaixo dos teus pés. Não recordo agora a cor da tua roupa, não interessava na altura, embora tudo em ti seja importante. Recordo sim, a forma como aceitaste o meu olhar nas tuas palavras, ainda que estivesses quase sempre calada, talvez à espera que da minha boca pudessem sair os poemas que te prometo sempre que nos deitamos longe um do outro. Poemas que só me saem à mão de um telemóvel ou de uma caneta emprestada. Sempre será assim na nossa história que simula o amor. Foi na forma mais parva que nos conhecemos. E eu continuo parvo na alvura que sublinha o que sinto. Por ti. Só por ti.
    Nunca tinha venerado um cabelo tão comprido como o teu. Sempre fui prático. Gostei de olhos, de bocas, de ombros, de pernas, até de pés. Nunca tinha adormecido a cheirar um cabelo tão longo como o teu. E é primoroso quando as portas se fecham, a noite se faz canção, os lençóis viram telas. Um primor que consente tocar nos teus longos cabelos, brilhantes, mesmo no escuro, brilhantes, louros. Chego a deixá-los nos meus dedos como trigo a perder de vista.
    Mas não me posso esquecer que o teu nome não é Beatriz. Aqui, no segredo, és a Beatriz. Dentro de mim és os breves espaços que restam, que se expandem de cada vez que me chamas de tolo, tolinho.
    Eu, que não sou Damião, mas que posso ser o que bem entenderes, tenho palavras escondidas. Tenho palavras guardadas na gaveta para que todas as manhãs tenham uma notícia poética, para que as noites não se esqueçam que tu existes dentro de mim e que eu quero existir dentro de ti.
    Da próxima vez que nos encontrarmos, pode ser em Odivelas, quero que me chames de Damião. Sempre é mais literário que o meu nome fino. Soletra todas as letras de Damião e eu direi que gosto muito de ti. Aprendi com os meninos a dizer que gosto de ti. Eles dizem-me que gostar de alguém é ter aquela fome na barriga que não é fome, é outra coisa, é um bichinho que faz cócegas mas que não é um bichinho nem são cócegas, é uma carta com dois quadrados seguidos de uma frase simples: Queres ser a minha namorada para sempre? E os quadrados dizem ambos: sim. A sério, juro que foram os meninos que me ensinaram a dizer que gosto de ti. E eu acredito neles. Assim como acredito em ti.
    Às vezes a Beatriz esquece-se do Damião. Nessas alturas eu fico triste. O Damião sou eu e também fica triste. Eu abraço-me ao Damião e digo-lhe que tu vais voltar, que a Beatriz vai voltar. Que ninguém se esquece de ninguém. Ele riposta que tu te esqueces dele em algumas noites, que a Beatriz se esquece. Que ele fica sozinho nas músicas. Que ele, o Damião, eu, adormecem a chorar. E eu abraço-me de novo ao Damião, a mim.
    Às vezes, o Damião, gosta tanto de ti, da Beatriz, que se esquece dos outros, que se sente mal ao pé dos outros.
    Passam-se tardes inteiras sem que o Damião saiba se este amor está a acontecer. Nessas tardes, confusas umas das outras, ele, eu, tenta sentar-se perto de uma esplanada com vista para o mar. Escreve histórias que promete serem inventadas. Prosas inteiras com promessas memoráveis sobre afetos que desconhece. Afinal, tu, a Beatriz, nunca deste a mão ao Damião e os vossos perfumes nunca se fundiram. Nunca houve lábios entre as vossas conversas, só palavras. Com o frio que sempre rasga os corpos em Odivelas, nunca houve distâncias que permitissem um abraço entre o Damião e a Beatriz, entre tu e eu.
    Damião e Beatriz.
    Eu e tu.
    Nos troncos de todas as árvores que vão da nossa casa até à vossa casa, sempre dois nomes, duas pessoas. Troncos arranhados com chaves que desconhecem o autor. Se eu, se o Damião. Como crianças de primária que imaginam o futuro a dois dias como a eternidade. E seria mais fácil se assim fosse. Se a Beatriz escolhesse o Damião por dois dias, para a eternidade. Se tu me escolhesses por dois dias, para a eternidade.

Comentários

  1. vou dizer-te um segredo:
    vim aqui dar a mão à ternura para que o dia me seja mais leve.
    (d)escreves tão bem dos sentimentos, Bernardo.
    que conto tão belo.

    beijo.
    M.

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  2. Muito bonito e bem escrito também....mas não contes a ninguém...é segredo!


    R.

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