Distâncias



A praia de São Torpes tem um areal por descobrir que ninguém teve coragem de desmontar. No parque de estacionamento os carros guardam-se uns aos outros. Cores mistas sobre rodas. As marcas no chão desenham marcas que denunciam uma ordem. E nós não cumprimos essa mesmo ordem. Somos três rapazes que precisam da desordem para entender o mundo. Estacionamos o carro em cima das marcas da ordem. Somos propositados.
Junto à praia, onde uma esplanada espera nascer de um verão antecipado, um pré fabricado utilizado como escola de surf. Os três, nós, não fazemos ideia do que tratam os livros de surfistas. Olhamos com comentários de desdém. Olhamos para as famílias burguesas que se sentam em frente à escola de surf, como donos. 
Sentamo-nos no muro que separa a possível futura esplanada do areal por descobrir. Enquanto observamos a falsa modéstia do sol, encantamo-nos com dedos de conversa. Lançamos desafios e apostamos que a praia é inteiramente nossa. E é neste determinado momento que o Barros decide vestir-se de rei. Num salto sem frio, está todo ele dentro de um fato de licra. Tem o escudo necessário para desafiar o mar para um duelo particular. Mesmo sabendo que sairá derrotado, o Barros caminha em pés de peixe para a espuma. Caminha vagaroso, com olhares de soslaio a enternecerem a multidão que n\ao o aplaude, grita, mas não aplaude. Sozinho, em pés de peixe, ele enfrenta um oceano cínico. Na derrota antecipada, mergulha e o frio não é mais frio, o mar não é mais mar, é calor, é rio.
Eu estou de óculos escuros, todo metido na minha própria sombra, a ouvir música pelos ouvidos harmoniosos. Erik Satie a recriar-se em pianos dentro de mim. Desde o muro, quase a chegar às nuvens, penso em ti, penso que em ti tudo é incrivelmente belo. 
Ao meu lado no muro, o Nélson debruça-se sobre o problema vida. A complexidade do corpo matéria a querer fazer-se alma. Deambulando por estratégias do vento, o puro rectângulo das coisas gerais. Sem conseguir ouvir Erik Satie, o Nélson levanta-se e escolhe sentir a areia nos pés descalços. Vai andando arqueado, ritmado pelas pequenas falhas no chão. Está quase na água. Antigamente a água era tímida. Agora, ao caminhar para a água, ele entende que o mar nunca foi igual, sempre mudou como as fábulas contaram. Ele já sente os pés a ferver no frio do sal. E é nesse instante que olha para mim a confirmar que afinal a vida existe.
Não liberto o muro e permaneço a ouvir Erik Satie. Tenho dois amigos perto do mar, a serem parte do mar. Estou no sitio correcto para me sentir vivo. Sinto-me vivo. Mas o amor não é total. As pegadas na areia são de todos, menos tuas. Conheço-te há tão pouco tempo que fazes falta naqueles anos em que não te vi. És toda tu as palavras que me invadem no pensamento que não pára desde esse ponto de partida. As nuvens fazem sonhos desenhados no ar e todos eles, com a distância do teu cabelo da minha pele. Antes os passos todos que nos separam fossem estrofes perdidas na busca do seu poema. Estamos separados à nascença e mais tarde ou mais cedo seremos.
Perdido na divagação do teu corpo, perco do horizonte o Barros e a sua luta, o Nélson e o seu problema vida. Não é tarde para os procurar. Estão ali mesmo, sentados à margem do tempo, em sorrisos que tenho inveja. Aproximo as minhas palavras. E somos novamente três rapazes, amigos, a cumprir a promessa da compreensão.
Estamos agora a caminho de Porto Covo. Vila pequena e ainda mais abandonada neste inicio de primavera. Entre o carro, a primavera e Porto Covo, decoro que gosto de ti. A minha poetisa. Gosto de ti minha poetisa. 
Na pequena aldeia colocamos o calor e o sol no colo e uma esplanada não perto do mar alberga as nossas conversas. Discutimos ansiosamente a criteriosa escolha da inteligência. Argumentamos sobre a vaga ideia do criacionismo. Aceleramos a explicação evolucionista. Somos cigarros espalhados no chão que juram a pés juntos que fomos aquele lugar. Pouco silencio entre nós. Muito pouco silencio. Um diálogo que estanca o tempo e explica o comprimento do ilusionismo.
A aldeia vai ficando mais pequeno à medida que o dia se tarda. Final de tarde, a morte da tarde, o velório da tarde, é o término do nosso dia. Com tempo ainda de eu identificar no crepúsculo dos teus olhos na infindável loucura do amor. Sim. Menina minha que clama David Mourão Ferreira. Mulher minha que sublinha José Régio. Amor meu que tem leis dentro, sensibilidade extrema. A aldeia faz-se pequena mas suficiente para que dois namorados se encontrem na língua das palavras. No findar do dia, tu sentada no banco de jardim, esperando e recebendo um poema na palma da mão. Escrevo. Juro que escrevo. Juro que vou sempre escrever.
Vamos de novo os três dentro do carro, a caminho de uma casa de campo. Cervejas geladas e petiscos. Companhia maior de quem urge conversar a noite inteira. E isso sucede-se. Ao ritmo de violino, solene, deambulamos diálogos tristes. Conhecemo-nos mais um pouco. A partilha dos subúrbios do pensamento convencional. O Barros, adulto-jovem. O Nélson, criança-homem. E eu entre eles a dissecar a permanência do amor nas vidas cruzadas que levamos todos. Eu a falar sem esconder que descobri um amor muito bonito. A regressar constantemente do teu pensamento, do nosso. A resgatar o meu futuro ao teu lado, a querer prometer-te as saudades. A ocorrerem-me frases inteiras:  Todas as rimas são poucas na tua distância. Encontros sem importância quando eu te procurei. Viagens em passos que terminaram nos teus braços futuros.
Chegados a casa, as frases inteiras ainda dentro de mim, com ânsias de te contarem, de te beijarem.
A noite a tardar. O sono a tardar. As conversas a tardares. Tudo a demorar demasiados ponteiros. 
Os amigos nunca sabem quando termina um dia.
Mas o dia terminou. O regresso não foi adiado e tivemos de voltar a Lisboa.
Fechei os olhos de Santo André até Lisboa. Fechei os olhos para saber-te ao meu lado. Quando os abri, os meus dois amigos conversavam ainda. Não quis interromper e silêncio. Voltei a ti.

Comentários

  1. a ternura com que falas desse amor põe os olhos de quem te lê a brilhar de emoção.
    pensei que já não se "usava" amar assim.
    carta linda.
    um abraço.

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