A história de nós


“Não te ofenderei com poemas.”
Sophia de Mello Breyner Andresen


            O dia está perto do fim. O cansaço acumula-se sem lugar fixo no meu corpo. Quero saber-me dentro dos lençóis para dormir, apenas dormir. Estou tão cansado que a melancolia transborda-me de uma tristeza que me imagina na solidão. Este estar sozinho há demasiadas estações, coloca-me sem paciência na primavera. Quero dormir, apenas dormir.
            Olho para o calendário e descubro que os meus irmãos gémeos fazem anos. São muitas primaveras na companhia dos meus irmãos gémeos, siameses. Sempre me conheci ao lado deles, irmão mais novo, mais pequeno, mais frágil, mais vergonha, mais timidez. Os meus irmãos gémeos, siameses, fazem anos e eu que me esqueço das datas, das idades, das histórias no dia de aniversário. Eu que por vezes me esqueço que cresço, que eles crescem, que os filhos deles crescem, que todos se fazem velhos e que não posso segurar o tempo.
            Eu queria ir dormir, apenas dormir. Mas vejo-me já à entrada da casa do meu irmão, a abrir a porta de entrada e a caminhar por cima do tapete que me recebe sozinho. Sou bem-vindo por um tapete simpático que me não me julga, não interpreta o meu ar cansado. Já dentro de casa, ouço a voz da minha sobrinha desde o quarto de brincar. Sigo as pequenas palavras que a minha sobrinha tenta fabricar, sigo tão depressa que não entendo que palavras são. Antigamente, há meses atrás, saberia decifrar os códigos que ela utiliza para falar, saberia até conversar com ela. Agora já não entendo nada. As crianças já não falam comigo. As crianças não falam com adultos que cheiram a tristeza.
            No quarto de brincar, o meu irmão tem a filha nos braços. Um do outro, sabem que existem. Há um enternecimento que me recorda a nossa infância juntos. O meu irmão é de novo o menino que me ensinou a crescer. Abraçado à filha, ele encontra sempre os gestos certos para que se compreendam. Eu estou encostado à ombreira da porta e quero chorar, eu quero chorar mas não consigo. Sinto que o meu irmão é o melhor pai do mundo e que ninguém o ensinou a ser pai desta forma. Quero dar um abraço ao meu irmão e dizer-lhe que ele aos meus olhos é o melhor pai do mundo. Quero agradecer ao meu irmão por me ter ensinado a crescer.
            Ainda encostado à ombreira da porta, comunico com a inveja e digo-lhe que tenho saudades de construir sonhos assim com alguém. Que tenho tantas saudades de escolher nomes de filhos na cama, pelas noites, sobre as manhãs. Mas logo me lembro que isso era no tempo dos segredos, no tempo em que lia-mos Eugénio de Andrade com o medo que as palavras terminassem.
            Ainda encostado na ombreira da porta, os meus olhos fecham.
            Sei que estou demasiado cansado. O querer dormir, apenas dormir. Mas vou a conduzir sonolento, por uma estrada que reconheço pelo calor nos vidros. O volante que as minhas mãos seguram não me é desconhecido, mas não é o meu carro. É um outro que sabia de cor as cores, os bancos, o cheiro, a sujidade. Não tenho coragem de olhar para o lado. Sei quem vou encontrar sentada ao meu lado. Quando tento enganar os olhos, o corpo, já estou a ver-te. Estás confortável, com os pés descalços em cima do tablier, a desbaratar fotografias de nós, do espelho que nos reflete, da paisagem que nos mostra o mar. Tens as pernas descobertas, morenas e magras, a desafiar a minha mãos na aventura de as saborear. Eu cedo. Cedo sempre às tuas pernas na vontade de te prender pela eternidade. Sorris. Estás sempre a sorrir nesta viagem. Eu amo-te nesta viagem. Eu amei-te na nossa viagem. Eu vou amar-te na viagem que agora faço sozinho.
            Paro o carro. Estaciono por um parque de areia que se confunde com dunas diminutas. Saímos porta fora, com as toalhas debaixo do braço e seguimos as pisadas desconhecidas rumo a um lugar perto do mar, vizinho do mar. Estacionamos os corpos e as toalhas à beira mar e ficamos assim. Estamos assim, abandonados pelas pessoas. Sempre precisámos apenas um do outro. E nunca precisámos de mais ninguém para nos fazer rir. Sobretudo nesse dia. À beira mar, vi-te sorrir como nunca. Conheci pela primeira vez a tua gargalhada no limiar do sol. Tinhas o peito despido, quase nua porque era assim o teu encanto. Sempre foste sexual nas tuas atuações. Eu sempre idolatrei as tuas manias lascivas corporais. E nesse dia estavas quase nua a sorrir, a rir, em risos. Cheguei a ver-te chorar de tanto rir. Cheguei a pensar que era um dia muito feliz. Foi um dia muito feliz. Foi um dos dias mais felizes que tivemos juntos. Tudo porque uma abelha sobrevoou os meus ombros e eu assobiei e quase dancei de medo. Foi um dia muito feliz.
            Ainda encostado à ombreira da porta, estou adormecido. Faço um esforço para acordar e quase caio. O meu irmão não se apercebe. A filha do meu irmão fica em silêncio e pela primeira vez olha nos meus olhos. Nos olhos-vidro da minha sobrinha, não se encontram memórias, nem saudades, nem lembranças. Os olhos-vidro da minha sobrinha têm sonhos e coisas que querem acontecer. Enquanto ela entra dentro dos meus olhos vazios, sabe perfeitamente que a tristeza está quase a ir embora. A tristeza no meu corpo de adulto, nas minhas mãos de criança. A tristeza é um monstro que ainda não assustou a minha sobrinha. O meu irmão luta todos os dias contra o monstro, todos os dias, todas as noites, o meu irmão esmurra a tristeza.
            Escondo-me numa fuga que me impede de me despedir do meu irmão e da minha sobrinha. Fecho a porta da entrada devagar para não deixar entrar o monstro. E escolho as escadas ao invés do elevador. Estou cada vez mais cansado. Degrau a degrau, cansado, cansado. Enquanto desço, recordo-me mais uma vez daquele diz feliz contigo. Desço cada vez mais veloz e tenho vergonha de estar vivo. Desço quase os últimos degraus e tenho vergonha de ainda te amar como naquele dia na Comporta, onde guardei o teu sorriso numa cova à beira mar. Desço o degrau final e quando abro a porta para a rua, é a noite que me recebe e me jura que nunca mais vais voltar.
           

Comentários

  1. Adorei o final. Aprendi com a Sophia a cortar, cortar e deixar o essencial.

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  2. É maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso. Não canso de dizer que é maravilhoso...

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  3. Adorei o texto...adorei a foto.. (um dos meus filmes favoritos).
    Parabéns!

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  4. Obrigado leitores, por acompanharem, por gostarem. :)

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  5. "...E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência."

    Sophia de Mello Breyner Andresen

    Adorei

    R.

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  6. Bernardo, "há meses atrás" é uma redundância. Similar à "Tenho um amigo meu". Só um apontamento. Acho-te, sinto-te, brilhante. A personificação do que "à flor da pele" significa. Aguardando a apresentação.. :)

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