A dúvida

    

        Tenho dúvidas se serão borboletas ou flores, sempre que penso em ti. Primavera. Pés descalços sobre pedra ou relva, passos chineses na ondulação de uma trança que suportas sempre no ombro esquerdo.
            É neste recomeço da primavera que idolatro as manhãs promissoras. Como fotografias antigas, ainda em trapézio e pano preto. Como o calor escondido no pescoço que não fala por ter um fio de pérolas em cárcere.
            Aprendo a andar novamente depois do despertador. Primeiro a gatinhar com medo do relevo do chão. Depois, as pernas como estacas, no complexo de não saberem ainda correr. E tudo de novo no créscimo dos dias, porque eu não existia antes de ti. Antes de a tua trança cair sobre o teu ombro esquerdo, antes do meu olhar encontrar a coordenação do teu cabelo. Antes de ti eu não existia.
            Antes de ti sobravam livros para ler. Hoje, acumulam-se livros por escrever. Hoje, cada tímido segundo no teu pulso é uma vontade de inventar uma ode. Hoje, a primavera são óculos escuro sem lente, pela tua cor natural e os meus dedos a tremerem sem recordações. Hoje, tu és a primavera.
            Quero lembrar-me de mim ainda agora, com medo dos vidros a pulsarem, medo das pedras que falam, medo do amor do chão. Mas isso foi tudo antes de ti. O ainda agora é um tempo que nem passado é. O passado é a tua caneta nas minhas mãos, o isqueiro que acende o teu cigarro, a palavra colega que desaparece.
            Este momento que passa, és tu. Este momento que quer passar, é a tua camisola de linhas horizontais, azul e branca, o teu ombro descoberto.
            Tenho dúvidas se serão borboletas ou flores, sempre que penso em ti.
            Fora de mim, fora da roupa que me cobre, nesse instante que tarda em passar, tu estás bonita.
            Tenho dúvidas.
            Na minha mesa de sonhos, uma borboleta não pousa, faz círculos em contornos que me desfazem. Na minha mesa, uma flor pousa no livro que tardo em escrever, sem cheiro, só cor, só cor.
            Eu sentado nesta mesa, descalço, assombrado pelos medos: vidros a pulsarem, pedras que falam, o amor do chão. O medo a ser apagado pela voz hesitante e singular da borboleta que não pousa: A menos que me magoes. Se nunca me magoares o “sempre” será pouco.

Comentários

  1. Há textos que não se interpretam...lêem-se simplesmente.

    Muito bem escrita esta tua dúvida.

    R.

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