Ficar




A palavra amor é apenas o que alguém inventou para definir um par de mãos seguras num movimento perpétuo.

    Esta história não é diferente de outras. Os protagonistas são tão eternos. Os lugares não são menos comuns que os que eu ou tu conhecemos. Os diálogos não são mais mágicos que um livro de pensamentos de Bertrand Russel. Esta história é recente e é normal. É uma história de amor em que as mãos estão seguras num movimento perpétuo.
   
    O avião sobe, contado em milhas. Ele desconhece a medição dessa forma. Conhece os metros, mas milhas são uma distância que cansa. Ele percorre o corredor do avião na busca de um lugar para se sentar. Isto é o sonho de um viajante. A maneira mais romântica de se percorrer distâncias que cansam.
    O avião está tão baixo que, da janela do carro que o carrega, ele angustia-se por não ser ele a pilotar. Está sentado num veículo sem corredor, ao seu lado o pai que o convence a conversar sobre os resultados da última jornada. Conversam antecipadamente, como se adivinhassem as palavras um do outro. Pai e filho, separados apenas pela idade e pelo tempo da idade. Pai e filho a percorrerem Portugal e um caminho que levará o filho a Espanha, a Valência.
   
    Faz frio no avião. A Margarida sente que o top sem alças é diminuto para o ar condicionado. Sentada à janela com os dedos a tocarem no vidro triplo que está entre ela e as nuvens, a Margarida quer compreender a cidade de Valência muito antes de sentir os pés descalços no chão, muito antes de desembarcar num aeroporto que não fala a sua língua. A hospedeira de bordo oferece um cálice de vinho do porto. Ela rejeita, não quer entrar na cidade embriagada, quer estar lúcida para percorrer as placas com nomes de ruas estranhas. Agradece encarecidamente à hospedeira e volta os olhos para as nuvens.

    Na fronteira entre Portugal e Espanha, o Barros já se despede do pai. É uma despedida curta, ainda falta muito caminho de estrada. O Barros olha para os bancos, para o tablier, para o volante, para os pedais. Tem um orgulho imenso no pai que conduz com uma delicadeza extrema. O Barros é todo ele um orgulho que se desfaz na relação grandiosa que une um pai e um filho. O pai não julga o olhar do Barros, mas tem de falar, ele tem de lhe dizer as palavras que reclamam dentro dele. O pai olha para o Barros e movimenta-se dentro dele os conselhos todos do mundo. Juízo, diverte-te, estuda, conhece, aprende, conhece-te, encontra, volta. São conselhos. São apenas palavras que descriminadas querem apenas dizer para que tudo seja vivido. O Barros ouve. Escreve num papel, todas elas. Guarda-as para as utilizar quando ficar sozinho na cidade.   

    A Margarida está sozinha no aeroporto. Longe da família que ficou. Longe dos amigos que ficaram. Longe de todos os que ficaram, mas que dentro dela vieram, dentro dela estão ali presentes. Procura a mala entre o corredor de malas de nomes: Amílcar Campos; Rosangela Cortez; Mafalda Miranda. São malas de várias cores e curvas, de gente que tem um propósito. A Margarida não se recorda da sua mala, precisa da etiqueta para ter a certeza. Vem a caminho, tem o nome em letras maiores que o papel. Carrega a mala e segue em frente, para a cidade, para a cidade que desconhece.

    Em Valência tudo parece mais cultural. O cheiro lembra tudo aquilo que nunca cheirou. Nesta cidade o Barros é somente um indivíduo que se desconhece. Traz na mala roupas, adereços, coisas insignificantes comparadas com o livro. A conquista da felicidade, Bertrand Russel. Tem sobre si o peso enorme das saudades. Nos contornos dos braços tem a temperatura da nostalgia. Nas pernas que querem andar esfuma-se a integridade de quem não vai voltar igual.

    A Margarida tem a residência a um palmo. Dentro da residência serão muitas vidas a respirar, muitas cidades dentro de outras cidades, muitas línguas dentro de outras línguas. Antes de conquistar o palmo que falta, respira.

    O Barros tem os contornos da rua que ocupa a residência. Tem uma porta para abrir e não sabe que chão vai pisar. A esperança explode dentro do peito e o desconhecido quer ser belo. A explosão quer sair para o exterior, para dentro da residência, para o quarto, para a cama. Está cansado e quer dormir. E nos passos que dá até à porta estão já sonos múltiplos. Abre a portada e uma explosão.

    Dentro do hall de entrada da residência a Margarida é uma miniatura. São pessoas a mais para tão poucos olhos. Pousa a mala identificada com o seu nome maior que a etiqueta. Na curvatura do movimento, uma explosão.

    Uma explosão acontece quando algo é compartimentado num espaço demasiado pequeno e, na força de se fazer existir, floresce sem consciência das paredes. Nesse crer, acontece a desistência do espaço e o que era demasiado pequeno fragmenta-se em pequenos pedaços. A explosão separa as coisas apenas e somente para que estas depois sejam novamente unidas.

    O Barros olhou para a Margarida e uma canção. A Margarida olhou para o Barros e uma canção. Uma sintonia com os sabores de uma orquestra sinfónica. Duas pessoas. Uma cidade. Uma viagem. Duas pessoas. Uma explosão. Duas pessoas.
    Sem se falarem ou perceberem, encurtaram-se. Apresentaram-se com os olhos. Letras de dois nomes nas pálpebras. Barros. Margarida. E logo uma escultura com a forma de um nome. E logo uma flor com a forma do nome.
    Foi já tarde, durante a noite, que ousaram falar. A poesia é uma letra apenas quando existe amor: pensaram os dois.
    Foi já tarde, durante a madrugada, que ousaram beijar-se. A poesia são lábios que se fecham num beijo: pensaram os dois.
    Era cedo, de manhã, quando perceberam que acontecia a plenitude.
    Não se levantaram da cama o dia inteiro. Deixaram para esse dia todas as conversas que nunca tinham tido. Descobriram-se totalmente entre lençóis, por via das palavras que significam tudo quando a outra pessoa nos entende. Deram as mãos no medo de se perderem. Abraçaram-se no receio de nunca mais se encontrarem. Por momentos breves, chegaram a adormecer, mas apenas o tempo suficiente para juntarem o sonho à realidade.
    Quando decidiram que era hora de conhecerem a cidade, saíram.
    Os dedos por vezes conversam com as mãos. O Barros e a Margarida tinham passeios de silêncio no diálogo das mãos. Os beijos complementavam a igualdade dos gestos. 
   
    Passaram-se meses. As manhãs entre lençóis. As tardes entre mãos. As noites entre eles. E a cidade a permanecer.
    De volta a Portugal prometeram ficar. E ficaram.


                                           “Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora.”
                                                                                                                                     Joaquim Pessoa.

Comentários

  1. é imenso o poder das mãos. imensos são os seus diálogos.
    é muito linda a tua história de amor.

    "...a primavera agitar-se-á num desespero verde, calar-se-á para sempre o grito azul de todas as manhãs..." poderias talvez acrescentar... :)

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  2. " Ações muitas delas pertinentes na nossa vida, o amor, a esperança e os sentimentos mil, mil como açoes de não sofrer. Desejos de corações unidos por destinos impróprios de lágrimas perdidas, e de amor sofrido, um ato, uma vida um pequeno momento...mãos que sustentam e mãos que abalam, mãos que limitam, que denunciam e mãos que escondem os denunciados, mãos que se abrem, mãos que conversam , mãos que nos falam e que nunca nos faltam..."

    Existem mãos e mãos.
    As tuas Bernardo, quais são?

    Lindo o teu texto (consegue-se entrar na tua história, sentir os cheiros, viver os sentimentos...)

    R.

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  3. Muito obrigado R.

    As minhas são mãos de memórias.

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  4. Nesse caso, tens umas mãos lindas...porque acredito na máxima que aqui te deixo:

    "A memória é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos."
    (Johann Paul Richter)

    R.

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  5. Li o teu texto e lembrei-me de te deixar o que de mim nasceu hoje:

    As mãos ditam em que estação se encontra o coração. Apertadas, no estio. Desprendidas, no tempo das chuvas. O que mais quero, no tempo que me resta, é viver num verão que não folga. Faltam-me as mãos que me devolvam o calor. Por vezes, sinto um formigueiro na palma da mão direita e penso: “estão por perto” ou “serão estas?”, mas isso é a minha mente a enganar-me. Como a maior parte das vezes. Qua...ndo me envia pensamentos destes: “ninguém vive permanentemente numa estação”, “a vida é um inverno, com intervalos de primavera”, “que mania a tua das mãos unidas, cada par de mãos vive por si”. Esqueço-me que isto não é trabalho para a mente. Mas tão-só para as minhas mãos. Elas serão as únicas capazes de reconhecer as tuas. Talvez seja da chuva, que as humedece e emudece. Não permite que vejam bem, que comuniquem com clareza a imensa energia de amor que contêm. Não me deixam chegar a ti. E continuam a suar de desespero, loucas como se estivessem em ataques epiléticos, altas a implorarem aos céus e a todas as divindades que te tragam até nós, baixas a desejarem o húmus de tão desalentadas ficam por tardares. Eu pressinto-te nos últimos dias, mais do que nunca, pelas minhas mãos. Andam quietas, quase imóveis, em sussurros. Limpas, os dedos longos a pedirem os teus para se enroscarem, as palmas côncavas a suspirarem pelo abraço das tuas. Macias, libertam já poros das tantas carícias que guardam para ti. Perfumadas, revelam ao mundo que frequento partes dos sonhos que são nossos. Voluptuosas, desenham o teu corpo todas as noites nos lençóis, sabem-no de cor, consigo perceber. As minhas mãos nas tuas. Vem. Dá os tons de verão às minhas unhas finas e naturais, nunca as pintei. Completa a minha com a tua pele.

    Amelie

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