Reflexão pequena do eu




    Não te compreendo. Duvido que alguma vez consigo concluir essa compreensão complexa de ti. Conheço-te mal. Quando falas comigo usas sempre essas metáforas que me custam a pensar, a desvendar. Mas és sincero. Sempre fez parte de ti as reviravoltas por palavras que têm mais do que um sentido. Deixas espaço para que os outros duvidem de tudo.
    Eu tenho o direito de te compreender.
    Eu senti contigo o golpe no cordão umbilical. Chorei ao teu lado quando a estalada da parteira. O magoar pela primeira vez no mundo. Ajudei-te a coordenares os passos para andares, para aprenderes a andar. Quando disseste a primeira palavra, a primeira frase sem metáforas, ainda sem metáforas, ainda sem dúvidas. Eu pensei contigo. No primeiro dia de aulas, ao lado da tua mãe, com a professora Helena, ao lado de tantos pais e crianças de ranho incontrolável. Acompanhei-te. Na preparatória, na negativa que terminou com sonhos de cientista. Eu não estudei, eu não quis estudar contigo. Junto a ti fomos atrasando os anos, os ciclos. No Instituto Espanhol, onde o amor te visitou, tão singular vez. Eu esperei, eu aguentei. Os primeiros lábios que beijaste. Senti contigo esse trémulo pensamento de que o Universo mudou de direcção quando beijaste a menina de sotaque castelhano. Antes do Verão, quando chumbaste duas vezes, não nos ilibei da responsabilidade e juntos fomos de uma pequenez terrível. Naquele dia fatídico em que deixaste de estudar por medo de falhar, por medo de deixares a vida para trás. Eu fiz a escolha contigo. E no instante em que, numa nudez tímida, descobriste que o sexo é coisa de adultos. Eu envergonhei-me no teu rosto encarnado. Lembro tão bem que num mar em flor foste feliz durante quatro anos. Eu fui a felicidade que sentias, pelo mar, pela flor. Fui eu, contigo. Juntos, terminámos uma temporada de segundos muitos que ultrapassara já as marcas para ser acontecimento. Mas, como companheiros, voltámos a pegar em livros. Decidimos ser professores e fazer do trabalho uma brincadeira sem fim. Nesse instante, encontrámos o amor tal como nos tinham explicado os adultos: sem segredos, com sonhos, com sexo, com beijos pela manhã, com passeios. Mas até isso largámos por sentirmos amor a mais. Sempre foi o nosso mal: amor a mais. E nas palavras, nas narrativas que inventaste, que inventámos, na ânsia de sermos escritores e vivermos da imaginação que nunca nos deixou cair do céu. Eu e tu.
    E agora estás sentado numa sala repleta de gente com perguntas. O teu livro nas nossas mãos e imensas perguntas sobre o que significa. Páginas inteiras de memórias que criámos para guardar o maior segredo de todos: amor a mais.
    Gosto de ti, rapaz, porque gosto de mim. Gosto de nós. Sempre soubemos escolher o que não existia e continuamos sozinhos. Enquanto nos tivermos um ao outro, continuaremos sempre sozinhos.

    Eu pergunto: Porque não te compreendo? Se somos um só, porque não compreendo toda esta nossa solidão que tarda em partir?

Comentários

  1. Vinicius de Moraes

    A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

    A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
    o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

    O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
    o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.

    Beijo

    R.

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