A minha rua



    Na minha rua as pessoas têm caras pobres. São todos vizinhos porque se tratam pelo primeiro nome e por alcunhas. É assim na rua onde moro. Pessoas com tanto por fazer e, no entanto, paradas no meio dos passeios, nem um pingo de afabilidade, só força, só robustez.
    Os cafés são só dois. Numa rua de muitas pessoas pobres, são apenas dois cafés que servem de restaurante e de taberna. Refeições e vinho carrascão. Alimento e bebedeira. A minha rua alimenta-se dos pobres coitados que se passeiam ébrios a caminho de casa, em direcção a uma casa que não conhecem o cheiro, em direcção a uma esposa que não lhes faz frente, que se deixa esmurrar porque é essa a sua funcionalidade. Uma casa que tem um sofá e uma cama. O sofá para o futebol e restos de cerveja. A cama para o sexo sem vontade e o sono que nunca se demora.
    Chego a ter pena dos meus vizinhos e penso que também eles terão pena de mim. É próprio dos vizinhos terem pena uns dos outros, mais do que inveja. Pena. Dos estores sujos por fora, ainda mais imundos por dentro. As marquises que escondem corpos demasiadamente volumosos a serem apaziguados pelo vidro rugoso das marquises. Pessoas que se passeiam semi-nuas por trás dos estores e nunca desconfiando que a pena dos vizinhos consegue ultrapassar os vidros rugosos. E tantos olhos das janelas, cigarros a serem fumados e atirados para cima dos carros estacionados. Cada janela tem o seu personagem. O rapaz sem braço que não sabe fumar, julgando que travar é engolir o fumo. O homem com fios de ouro pendurados ao pescoço, de ar italiano e mafioso, a fingir que fuma para se excitar com a adolescente que surge despida em todos os finais de tarde. O travesti brasileiro de barba cerrada, escondendo a sua identidade como se a roupa fosse camuflada de um outro sexo. O cão que fita o mundo da janela, que já ultrapassou a idade limite canina, que observa o mundo e o bairro da janela e que nunca ladra, nunca ladra.
    Eu também vou à janela. Da minha marquise sou mais um dos que pensa que habita o reino dos céus. Não há cigarros que me escondam. Coloco os cotovelos sobre o metal e deixo o entardecer continuar as ordens da natureza. Tenho pena dos meus vizinhos que estão presentes em todas as direcções. Eu e eles sabemos que entre nós existem poucos segredos, não há muito a esconder quando conhecemos as paredes forradas de cada um. Somos a companhia uns dos outros. Mas não partilhamos qualquer palavra. Somente sossego. É esse sossego que nos une e que nunca nos permite ultrapassar a fronteira do mutismo. É esse sossego que nos permite o cruzamento na rua e nem uma palavra, apenas reconhecimento, intimidade, mas silencio.  
    Gosto de chegar à minha rua de madrugada. Nessa altura os solitários passeiam os cães e falam sozinhos. Diálogos quase filosóficos sobre os passos curtos dos animais. Reflexões por alto sobre os carros em espinha. Introspecções clandestinas acerca das arvores que gritam na agitação. E os cães a dobrarem-se, sem resposta, só ouvidos. Gosto de chegar à minha rua e desviar o olhar, para saberem que estou presente na vida de todos eles, para que saibam que também eles estão presentes na minha vida.
    Por vezes, os meus vizinhos são a parte maior da minha vida.
    De manhã, não há vida na minha rua. Os reformados estão desarticulados das horas e julgam a manhã como as noites. São inválidos porque ninguém se lembra deles. Dormem e nunca acordam porque os olhos nunca se fecham. É triste quando imagino a solidão dos meus vizinhos reformados. Apetece-me segurar-lhes na mão e entregá-los à morte para que os gritos não se ouçam do lado de lá da porta. Eles esperam a morte, não à volta a dar quando se espera a morte e ela não chega, e ela sempre a tardar. A morte nunca vem à hora marcada.
    Às vezes os rapazes trazem bolas e pedras. Fazem balizas de um passo e a bola voa por cima dos carros, por baixo dos carros. Ouvem-se pedidos de amizade verdadeiros. Os rapazes convidam raparigas para jogar. Elas nunca aceitam mas ficam sentadas no muro perto dos rapazes. É aí que começa o amor. Nesses muros em que se sentam todos, rapazes, raparigas. Nos muros onde consigo ler nomes apaixonados por outros nomes. Naquela idade o amor não tem passado nem futuro. Vivem-se os beijos com uma ternura que não existe mais. Há alturas em que gostava de vestir os calções de futebol e descer as escadas. Ser criança por um dia e não regressar.
    A minha rua é uma tranquilidade que ninguém teve coragem de escrever. As paredes dos prédios têm poemas escondidos: O amor é demasiado pesado. É uma pena que ninguém suporta. E eu vivo com essas frases desde sempre. Um fardo que queria ter mostrado ao Al Berto. Ele teria gostado de continuar a escrever nas paredes. Eu teria acompanhado e os dois imortalizaríamos aquela rua, aquela tranquilidade.
    São muitos os anos que se foram desde a primeira construção. O primeiro vizinho da minha rua já deve ter morrido. Se calhar é algum reformado acamado, como aquela vizinha do 1º andar que morreu abandonada em casa e que deixou um cheiro nauseabundo no prédio inteiro. Morta, em casa, inexplicavelmente com a porta trancada. Com medo que a morte não chegasse à hora marcada e tocasse à campainha. Foi encontrada pelos bombeiros que estranharam a ausência de chamadas para a central. Morta, com o corpo em decomposição há semanas. Morta. Com uma tristeza no rosto e com a aliança longe do dedo anelar, no meio do tapete que dividia a sala da cozinha.
    Não me vejo longe deste lugar. Aprendi tudo sobre a literatura desde a minha janela. Na companhia dos meus vizinhos aprendi que dentro das palavras existem outras palavras. E descobri, com os cotovelos sobre o metal, a ver o fumo de todos os meus vizinhos, que a harmonia silenciosa torna cada momento um acontecimento inédito, incontrolável, indecifrável, irrepetível.

Comentários

  1. A minha rua também existe, é nela que muitas vezes seco, sem ninguém ver, as minhas lágrimas.
    Quando dou os meus passeios solitários olho, olho as outras ruas, mas nenhuma se parece com a minha. Acho-as sempre demasiado hostis ou pouco cordiais.
    Acabo sempre por voltar à minha verdadeira rua, não esta, mas aquela que me viu crescer e tornar mulher...
    São nas paredes dos prédios dessa rua que eu agarro as minhas velhas memórias cheias de cor...São as paredes dos prédios dessa rua que me fazem feliz...Guardo nela o encanto de lá ter sido criança. Hoje dou-lhe o nome de "Lembrança".


    Lindo o teu texto, a escrita e as palavras.

    R.

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