Primeiro filho




    O meu primeiro livro já tem um corpo. A sua transformação em papel, em cartão. Já não existe apenas dentro de mim. Acontece.
    Nestes dias profundos, pouco me resta para pensar. O livro. Dentro dele e fora dele está todo o caminho que andei até este dia, estes ias.
    Dos meus discursos interiores há toda uma temática revirada para a capa, a contra-capa, os agradecimentos, os textos, os títulos, a editora, a minha pessoa. Não penso em mais nada. O dia da apresentação do meu primeiro filho. A imortalidade das palavras que aprendi. O livro.
    Por vezes, quando tento enganar a vida, ultrapasso-me e estou sentado na cadeira que me preparam. Os cotovelos de nervosismo sobre a mesa. O meu primeiro filho aberto, de pé, de frente para o publico e de costas para mim. O meu livro.
    Ao meu lado, o editor que acreditou e que lembro as primeiras palavras:
    - O jovem escreve bem, tem aqui bom material. É editável.
    E logo o meu pessimismo a desmontar toda uma frase. Jovem. Serei ainda tão novo? Escreve bem. Serão as minhas palavras assim tão esclarecedoras? É editável. Não será um capricho da editora, editar-me, apenas para justificar custos ao contabilista?
    De novo eu na cadeira e o meu primeiro filho de costas voltadas para mim, de corpo aberto para toda uma gente que me desconhece, que me quer conhecer, que me quer ler.
    Olho para as pessoas. Conheço-as. O Gonçalo em destaque, com um olhar de aço no seu contentamento interior. Alguns amigos que duvidam sempre da escrita e do homem que sou. A minha mãe que não esconde as lágrimas. Os meus irmão que escondem as lágrimas. Nenhum escritor. Não encontro nenhum escritor entre as perguntas que serão feitas. Muitos colegas de curso, sempre na vanguarda de acreditarem que eu viria a escrever publicamente, mais tarde ou mais cedo. Os professores, uns intelectuais, outros nem tanto, uns leitores de Joyce, outros nem tanto. Na plateia, também rostos que não identifico o nome, talvez curiosos, talvez convidados. E nem um sinal teu. Tu não existes naquela sala em que cabe o mundo inteiro.
    Olho para o editor e este responde no seu modo frio e informal:
    - Agora é contigo.
    Apresento-me. Há um riso que percorre as paredes e que quase derruba o livro. Um riso pela minha minimal importância. Bernardo. Segue-se uma breve descrição dos textos, explicações pensadas para os títulos. Silêncio. Desfruto deste silêncio para ganhar fôlego. Perguntas que talvez venham. Silêncio.
    - O que é que o tio está a fazer ali sentado? - A minha sobrinha Maria na candidez de quem compreende tudo, de quem duvida que eu pudesse estar sentado daquela forma.
    Ando às voltas, falando sobre o meu processo de escrita, sempre na busca da frase que me possa eternizar. E o público a ouvir. Alguns amigos ainda a desconfiarem do autor e do homem. Os professores que me chumbaram a letras, a rirem em tom de gozo, desacreditados. E eu só, tão só naquela cadeira, a querer fugir porque não estás sentada ao meu lado, para te apertar a mão como naquele concerto. Mas dentro de mim, todas estas pessoas, menos tu, a fazerem-me tanto. A divina felicidade de todos eles.
    Bebo água e sinto-me importante. Gosto tanto de escrever. No caso de este momento terminar, eu, eu vou ter orgulho no que escrevi. Tu a fazeres-me tanta falta na sala. Eu a ter de continuar a falar e tão afastado da delicadeza com que escrevo. Nunca falei, nunca falarei da mesma forma cuidada com que gosto de escrever.
    Segue-se depois a sessão patética de assinar os livros. Tantos filhos como meu nome na capa. Agora o meu nome escrito por mim, logo eu, que não sei fazer uma rubrica. Desde que aprendi a escrever que tento inventar uma rubrica que tarde em surgir.
    Abro livros, filhos. Pergunto o nome na dedicatória e, prontamente, me surgem poemas que escondo. Bernardo. Não há cumplicidade alguma entre receber e devolver um livro, um filho. Há uma lembrança com coragem.
    A sala esvazia-se. Menos pessoas, mais cumplicidade agora. Só eu e o editor que me abandonou para uma outra apresentação. Talvez alguém que escreva bem melhor do que eu, alguém que valha verdadeiramente a pena ser lido, percorrido.
    A sala já deserta e tão abandonada quanto eu. Um último livro assinado e voltarei para a solidão triste. Já falta pouco.
    De livro estendido, pousa-o na minha mesa e sem qualquer ruído de nome ou apelido. Tu. Tão leve. De braços magros, ainda mais magros que há 8 meses. A tua testa larga a deixar espaço para os teus olhos que custa-me a recordar, para os teus lábios que nunca precisaram de falar. O teu cabelo de fineza pura, a cair sobre o casaco que te ofereceste naquele dia do Chiado. A tua mão direita, despida do anel que partilhámos o sentido. O relógio a esconder a cicatriz que se alojou no teu pulso. As tuas unhas naturais. Como eu gosto das tuas unhas, dos teus dedos. E tu a sorrires de boca fechada. Mas a tua mão esquerda ao encontro de um rosto que não tenho coragem de olhar. A tua mão fechada na dele.
    Assino o livro. Sem cumplicidade. O meu primeiro filho a ser entregue à mãe legítima. E eu a querer morrer. A compreender que naquele momento eu poderia morrer sem a mínima expectativa que a felicidade me pudesse algum dia visitar. A compreender que morri no dia em que não te apertei a mão nas horas que passara. Como naquele dia do concerto.

    Mas ainda é hoje. Tudo isto é ainda imaginação minha. E se não fosse isso, o que seria eu?
    Ainda é hoje e tudo ainda vai ser diferente. Nunca é nada como eu prevejo. É sempre diferente porque eu não sou escritor e não adivinho os versos.
    Resta-me não morrer ainda e aguardar o meu primeiro filho, o meu livro, a extrema felicidade de todos aqueles que estarão nessa sala que imagino. Sem ti, sem nada do que prevejo.

Comentários

  1. Vim ler-te ,sabe-me bem o aconchego das tuas palavras...

    Antes de tudo e a ter feito uma correta interpretação, quero que saibas que eu fui das que acreditei que tu chegarias aqui!

    Um viajante caminhava pelas margens de um grande lago de águas cristalinas, imaginando uma forma de chegar até o outro lado, aonde era seu destino. Suspirou, profundamente, enquanto tentava fixar o olhar no horizonte. A voz de um homem de cabelos brancos quebrou o silêncio momentâneo, oferecendo-se para transportá-lo. Era um barqueiro.

    O pequeno barco envelhecido, no qual a travessia seria realizada, era provido de dois remos de madeira de carvalho. O viajante olhou detidamente, percebeu haver letras em cada remo. Ao colocar os pés empoeirados dentro do barco, observou que eram mesmo duas palavras.

    Num dos remos estava entalhada a palavra ACREDITAR e no outro, AGIR. Não contendo a curiosidade, perguntou ao barqueiro o motivo daqueles nomes nos remos.

    O barqueiro pegou o remo, no qual estava escrito ACREDITAR, e remou com toda força. O barco começou a dar voltas, sem sair do lugar. Em seguida, pegou o remo em que estava escrito AGIR, e remou com todo vigor. Novamente, o barco girou em sentido oposto, sem ir adiante. Finalmente, o velho barqueiro, segurando os dois remos, movimentou-os ao mesmo tempo, e o barco, impulsionado por ambos os lados, navegou através das águas do lago, chegando calmamente à outra margem.

    O barqueiro disse ao viajante:
    - Este barco pode ser chamado de AUTOCONFIANÇA. E a margem é a META que desejamos atingir. Para que o barco da AUTOCONFIANÇA navegue seguro e alcance a META pretendida, é preciso que utilizemos os dois remos ao mesmo tempo, e com a mesma intensidade: ACREDITAR e AGIR.

    Não basta apenas ACREDITAR, senão o barco ficará rodando em círculos, é preciso também AGIR para movimentá-lo na direção que nos levará a alcançar a nossa META. Impulsione os remos com força e com vontade, superando as ondas e os vendavais, e não se esqueça que, por vezes, será preciso até remar contra a maré.

    Desconheço o autor deste texto, mas reconheço nele uma grande caraterística minha: Acreditar.

    Mais uma vez...não sei se interpretei corretamente o teu belíssimo texto, mas poderei depreender que vais editar um livro? Se for o caso os meus parabéns , mereces, acreditaste e agiste.


    R.

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