O silêncio



    Olho para a senhora que prepara o embrulho, toda delicadeza nas mãos, toda fineza em cuidados. Olho para o pormenor dos dedos a enlaçarem, trocados e enrodilhados, a manejarem a estética, na procura da estética. A minha mão pousa inquieta no balcão de vidro. Por baixo, jóias que entristecem meninas, relógios que atrasam baptizados, pulseiras que danificam casamentos. Tudo riqueza, ouro sobre ouro que agrada às senhoras de pinturas bárbaras, de peles que se desfazem na temporaneidade, rostos que são enigmas perdidos dos séculos. Ouro sobre ouro.
    A senhora termina o embrulho e retira um saco que não combina com os olhos pintados, colocando o embrulho dentro, num deslize suave. O embrulho escorrega como sonhos em nuvens e termina no fundo, ainda estética.
    Saio da relojoaria e sei que o que comprei foi um presente. Dentro do saco que não combina com os olhos pintados, está um embrulho que guarda uma surpresa que o deixará de ser, que nunca o foi. O embrulho é uma surpresa que me permito a mim própria. Como se me conseguisse surpreender ao desembrulhar um presente que tento esconder o que seja. Um embrulho construído com uma delicadeza extrema, por mãos de romantismo. E um presente é sempre um presente. Surpreendente ou não.
    Antes de me ausentar da baixa lisboeta, encontro uma montra e um vestido. Hoje é dia de devaneios, de gastos caros e medíocres. Entro na loja e uma mulher de modos difíceis pergunta os meus desejos. Que deseja? Entro tímida e não encaro, quero o vestido e ninguém me fará mudar de ideias, nem a minha pobreza, nem os feitios temerosos da futilidade, tudo será inútil perante a minha vontade. A minha vontade tem fogo nas pálpebras.
    Com o vestido a deslizar para dentro de mais um saco que carrego, retiro o livro de cheques e sem olhar a números risonhos, números que não seriam nada perante a minha vontade de fogo nas pálpebras, números que seriam apenas isso. O livro de cheques aberto, pela primeira vez aberto, ainda em branco, mais branco que todo o chão que escorregadio pelo esfregona de uma africana que se cansa. Assino. Sem rubrica. Assim, sem uma rubrica porque nunca aprendi, nunca precisei, sempre tive quem me oferecesse coisas, muitas coisas.
    Os braços são baloiços que sorriem. Os sacos são empurrões de crianças que não crescem, são surpresas que serão contentamento. As minhas pernas são movimentos que se confundem com gestos de natação. Sou jovem e o frio da baixa de Lisboa é somente companhia. Sou jovem e não preciso de ninguém.
    Chego a casa e a porta parece abrir-se sozinha. Não me recordo de colocar as chaves na fechadura. Não me recordo de ter saído da baixa de Lisboa. Não me recordo de entrar no carro e de fazer o trajecto até aqui. Perdida no absoluto do meu pensamento. Num lugar curioso que quero mas que desconheço.
    Estou já em casa, no sofá. Encosto-me desajeitadamente para trás e não fico melhor. Os sacos pousados no chão e eu num esgar que mente, na penumbra, num arrependimento que me consome como larvas. Os sacos por abrir. Os embrulhos por abrir e eu a sentir-me tão sozinha. Sinto como se os vizinhos falassem de mim como a transtornada que dorme sozinha, que não se ouve, que não existe.
    Sei que eventualmente terei de fazer o jantar. Talvez lasanha para uma pessoa. Mas eu nem sei fazer lasanha. Talvez salada russa para arrefecer as paredes que se calaram faz tempo.
    Abro o tampo da mesa. Precisarei de uma toalha maior do que a habitual. Talvez aquela de linhas ténues a tinta dourada, mais requinte, mais primor, mais refinada. E já a toalha estendida. Dois pratos. E tudo dois. Até dois copos para cada um: água e vinho. Tudo dois. Uma pequena oferenda que me faço.
    A luz incide sobre a mesa e sinto-me menos sozinha. Vou ao quarto e levo comigo os sacos. O banho de imersão demora-se na eternidade da torneira a trabalhar. Entro na banheira e o meu corpo não é já o meu corpo, é carne que se deixa banhar para renascer. O meu corpo tem curvas que sei belas. O meu peito preenchido pelos vértices das minhas mãos. O meu corpo tem uma beleza que me gabam das varandas, uma voluptuosidade que se deixa retribuir. Deitada na curta banheira, menos curta do que eu, quero adormecer. Trabalho demais e quero adormecer mesmo por ali. Talvez me afogue solene e o mergulho me faça completa. E chego mesmo a adormecer e pequenas gotas acordam-me. Gotas nos meus mamilos, ao redor do meu umbigo, na entrada das pernas, humidade do tecto, gotas. Acordo e termino enrolada numa toalha que tem o meu nome escrito.
    Entro de novo no meu quarto, ainda mais nua de quando nasci. Escolho lingerie que escolhi semanas antes, ainda com etiqueta, ainda na espera da sua estreia. E a lingerie a imaginar-me ainda mais bonita por fora, mais triste dentro. O espelho que me surpreende gaba-me como os elogios das varandas. O vestido já deitado na cama, azul. O vestido a vestir-me como se me quisesse abandonar. Eu cada vez mais bonita. E nem um sorriso. O vestido a falar comigo, a dizer-me palavras que me custa acreditar. És bonita. Faz-te bonita. Sê bonita aí. E o vestido e eu. O vestido.
    De novo o espelho a querer possuir-me. Por momento chego a concordar com as palavras do vestido em mim. Bonita. Mas faltam-me os sapatos. Não comprei sapatos porque sabia-me descalça em casa, a jantar sozinha. Resta-me o segundo embrulho, o tal feito com mãos românticas, de delicadeza. Removo o laço. Sempre gostei de laços, desde que miúda a usar sapatinhos pequenos com um laço de rosto. Era menina. Eu ainda sou uma menina. Removo o laço sem o estragar. O embrulho surpreende-me com um colar cheio de rigor. É precioso o que reconhece o colar. Coloco-o ao pescoço e penso que alguém deveria ajudar-me. Alguém deveria apertar a parte de trás do colar por mim. Mas eu sozinha.
    Carrego o vestido azul e o colar ao pescoço. A mesa posta para dois e a minha companhia sem aparecer, porque não há companhia possível quando queremos estar sós. No isolamento de uma mulher solteira há sempre espaço para ainda mais solidão. As mulheres não precisam de ninguém. As mulheres como eu, andam descalças com um vestido azul por casa porque podem, porque lá fora ainda nos gabam das varandas mas não sabem o nosso nome, não sabem que poema se escreve na extremidade das pernas.
    Sento-me. Por fim sento-me. A cadeira ao lado a tornar o silêncio ensurdecedor. Ninguém a passar-me o sal. Ninguém a escoar o vinho para o copo que não é para água. Por isso deixo os copos vazios. Os copos serão depois colocados na máquina de lavar loiça como engano, como mentira, como aldrabice de alguém que finge jantar em companhia. Mas eu não queria mentir, nem à máquina nem a mim própria. É humilhante mentir-se a si mesma. As mulheres não mentem.
    Sem fome os talheres não têm vida. Ficam por ali estendidos numa nulidade extrema.
   
    O telemóvel toca. É o sinal de mensagem. Hesito em me levantar, mas os pés descalços têm vida própria e já correm o hall de entrada. A luz pisca, o visor do telemóvel traz-me um número desconhecido e uma mensagem:

Vou subir pelas escadas, embora pudesse apanhar o elevador, mas assim dou-te tempo para te apaixonares por mim. Subo as escadas e conto o número de degraus que vão demorar até à tua porta. Vou bater-te à porta, muito embora pudesse tocar à campainha, mas sou um rapaz simples e de velhos costumes. Gosto de sentir a porta nos dedos. Ouvir o barulho da porta e os passos a encaminharem-se. Tu vais abrir a porta depois de perguntares quem é. Eu não vou responder até olhar para o teu rosto, para te ver com o vestido azul e de colar brilhante. Vou dizer-te que me chamo. E tu vais gostar do meu nome. Vais convidar-me para entrar porque não queres jantar sozinha e porque eu pareço ser simpático e boa pessoa. E os meus pés vão entrar descalços pela tua porta, porque te respeito, porque já gosto de ti. E a cozinha vai chamar por nós e vamos sentar-nos à mesa. Não quero saber qual é o prato. Quero apenas escoar o vinho para o copo que não há-de ser o de água. Vou passar-te o sal antes mesmo de mo pedires. E vamos falar durante todo o jantar sobre páginas, lugares. E o jantar ia terminar. Antes de olhares para a loiça já eu a terei colocado na máquina de lavar e não irei mentir. Eu sei que as mulheres não mentem. Eu não mentirei. E sem mentiras algumas pegarei na tua mão e levarei o teu vestido azul até à sala. Quando estiveres cómoda, eu pegarei numa caneta de feltro e escreverei um poema na extremidade das tuas pernas. Vou beijar-te os ombros e só comprovarei os teus lábios quando acreditares que vais ficar comigo para sempre.

    Deixei o telemóvel na estante. Olhei para a porta de entrada e o silêncio não se quebrou. Ainda descalça, dei dois passos em direcção ao tapete e quedei-me ali. O silêncio tem um desbarato de pontualidade que a própria surdez não concebe. O silêncio é o maior segredo do mundo. O silêncio é tão indefinível que assusta. E só deixei de querer perceber o silêncio quando ouvi o bater da porta.

Comentários

  1. ... sim, assusta!

    texto fantástico.
    mensagem linda.

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  2. É no silêncio das palavras que se escondem e se encontram os maiores sentimentos.
    A solidão de mãos dadas com o silêncio...parece-me sensato prudente e muito revelador.

    Mais uma vez...um texto maravilhoso. Parabéns.

    R.

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