José Luís Peixoto




    Só existem dois nomes na minha estante de livros: José Luís Peixoto. Vergílio Ferreira. Tudo o mais que enche bocados de madeira, como paralelepípedos, são coisas amareladas como livros, nomes que não decorei, histórias que em outras aventuras foram mais aventuras. Twain. Toltstoi. Celine. Steinbeck. Fitzgerald.
    Para as minhas mãos que seguram livros, só há lugar para dois nomes: José Luís Peixoto. Vergílio Ferreira. O resto é fogo e cinza. O resto são livros que foram percorridos por outras mãos, outros olhos, outro eu que não eu.
    Encontrei o José Luís Peixoto no término de uma desgraçada história de amor. Muitas discussões. Imensos palavrões de não literatura.
    Encontrei Vergílio Ferreira numa noite desencontrada do dia, na distância de tempo que demora adormecer e acordar, esse tempo que nunca determinamos. Incontrolável.
    Muito tempo me fugiu desde esses encontros.
    Encontrei pelo caminho uma entrevista a Clarice Lispector que me atormentou. Uma escritora num cansaço perturbador. A escritora ousada que fugia dos adultos como eu. Clarice imóvel a responder a perguntas sem as responder, toda no interior do seu tormento. Lispector a cravar-me o destino imutável de que eu nunca seria escritor.
    Foi o meu bolso que me salvou. “Estás linda dentro do meu coração.”. O José Luís Peixoto dentro do meu bolso a salvar-me, a salvar a minha escrita, a brincar com a minha escrita. No meu bolso o José Luís Peixoto entre crónicas e romances, a dizer-me que o mundo é pequeno ao lado dos escritores.
    Durante anos a Clarice Lispector sentada no interior do seu tormento a não responder. Mas logo a feira do livro e o José Luís Peixoto sentado, a esperar gente e a sorrir para a gente que se fazia existir. Todos sentados em cadeiras de pano, a sorrirem e a construírem qualquer coisa. O José Luís Peixoto a escrever o nome mil vezes: José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. José Luís Peixoto. E a gente que existia, a rir, a virar costas e a rir, a ler, a sentirem-se ainda mais gente. E eu longe. Eu longe na rua íngreme, a ter medo de existir, a ter medo do meu nome escrito mil vezes, a ter medo do José Luís Peixoto.
    Fiz uma tarde inteira de silêncio a olhar para as cadeiras de pano. A cortar as horas em fatias. A poupar o tempo. A estender a tarde por muitas tardes, a mesma tarde. A poupar o tempo.
    Foi quando vi o José Luís Peixoto sozinho nas cadeiras de pano que decidi ser gente. Caminhei em passos de príncipe para perto. E a minha sombra com passos diferentes. A minha sombra mais rude do que eu, ao meu lado, a estremecer palavras. A minha sombra com os contornos de Vergílio Ferreira, silenciosa. As minhas pernas a caminharem e eu a olhar para a minha sombra, para o Vergílio Ferreira. Ela, a sombra, ele, Vergílio Ferreira, a dizerem-me que seria próprio de existir, que o José Luís Peixoto existe, que eu deveria sentar-me na cadeira de pano e pedir o meu nome com a caneta do José Luís Peixoto escritor, pessoa. Sentei-me. Boa tarde. Estendo o Cemitério de Pianos. Digo o meu nome. Olho o José Luís Peixoto e entendo que o Homem se faz com as suas palavras, que o Homem são verbos e poemas e romances, que o Homem tem dentro metáforas que não cabem em todos os livros.
Lembro uma última vez a entrevista da Clarice Lispector e compreendo que cada escritor tem uma alma diferente. Cada escritor tem muitas histórias dentro. Cada escritor imagina a vida dentro.
O José Luís Peixoto não tem caneta e pede na ironia da literatura que lhe empreste uma. Também não trago. Nunca carrego canetas dentro de mim. Atrás de mim uma pessoa que se fará gente, com muitas canetas e poucas palavras na bolsa. O José Luís Peixoto assino o nome com agradecimentos e diz-me que o Alentejo também é a sua casa, que tem saudades, que transforma essas saudades em romances. Tem um sorriso cansado, sincero, mas cansado.
Despeço-me com um aperto de mão e digo-lhe que o meu primeiro filho vem a caminho: o meu livro. Foi um prazer. Até sempre.
Desço o Parque Eduardo VII com uma velocidade de desenho animado. Entro dentro do carro e o rádio acende-se. Está a meio da Sinfonia nº5 de Mahler. Abro o livro para confirmar que o José Luís Peixoto existe: Para o meu amigo leitor Vergílio Ferreira. José Luís Peixoto.
A Sinfonia nº5 de Mahler termina e toda a minha compreensão não entende o que se passou nessa tarde. Naquele momento não tenho sombra e a literatura começa.

Comentários

  1. Gostei. Muito. Só acho que o José luís é mais bonito e sereno do que a foto mostra...

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  2. Excelente texto Bernardo!
    Espero sinceramente alguém dia ler algo mais seu, em forma de livro.
    Parabéns.

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  3. Muito obrigado.

    Podem ter o prazer de ler o meu livro, que sairá em Fevereiro. Um Trago de Palavras será editado pela Fonte da Palavra e já falta pouco para ser matéria.

    Até lá, o meu blog é a minha escrita maior.

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  4. Que bonito... Consegues escrever o que sinto em relação ao JLP!!! Não o conseguia definir para mim até te ler.... Obrigado.

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  5. parabéns pelo(s) texto(s) e pelo blogue. continuarei a passar por cá. um abraço, dg

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  6. wedding-claudiaejonathan, muito obrigado por teres lido e gostado. Foi a minha forma de agradecimento ao JLP por tudo o que escreve, por tudo o que nos permite.

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  7. dg, obrigado! Vai aparecendo. Espero que aprecies a minha escrita. Abraço

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  8. Adorei.. adorei. Li, reli e vou voltar a ler e a reler. É que eu sou mesmo assim, quando gosto!
    Emocionei-me!
    Já estamos em Fevereiro... Para quando o livro?
    Obrigado pelas palavras e pela emoção.
    Beijos
    Becas Diogo

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  9. Lindo o seu texto. Tbm senti o mesmo qdo estive pela primeira vez com o José Luís Peixoto... Os livros dele são tão importantes para mim q eu queria apenas estar de frente com o homem por trás das palavras. Queria poder olhar nos olhos de fundo verde que ele tem, não ser apenas mais uma dedicatória. Pessoa serena e muito atenciosa, ele me tratou com muito carinho! Um homem admirável.
    Abraço pra ti, ótimo blog.

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