A noite




Onde está esse passado que nunca se fez adiante? Uma réstia desse acontecimento ainda a atormentar, como uma trança por desenlaçar que carece de arranjo, de simpatia.
    Era sempre de noite quando te encontrava. Corria de peito feito quando a lua sucedia, em explosões de passos, bombardeamentos pesados pela calçada, pelo alcatrão, pela erva. Disparava como setas de um arco, porque era de noite que nos experimentávamos. Era quando me convidavas a visitar-te, na desculpa de um cigarro que se transformava em muitos cigarros. Nunca importava a escuridão, o alvoroço tranquilo da escuridão. Encontrava-te, bastava, chegava. Se eu chegasse cedo, esperava. Se chegasses cedo, esperavas. Tudo resultado dos encantos que tínhamos um pelo outro.
    Nas primeiras vezes ficávamos sem palavras. Apenas olhos, avaliação descontínua dos olhares. Depois, depois galvanizados, permitíamos conversar sobre as estrelas, sobre o nevoeiro, sobre as estrelas escondidas pelo nevoeiro. E foram imensas as noites que descaíram até deixarmos as palavras e depreendermos que os ombros também podem falar, que os ombros e o comprimento dos braços também sabem falar. Encostávamo-nos. A cada noite que terminava, estávamos mais próximos um do outro. Os ombros e os braços cada vez mais perto, mais encostados. Tão perto ficámos que numa noite destemida a tua cabeça pousou nas minhas pernas, no meu colo. E eu fiquei impávido e a serenar os teus cabelos esguedelhados, a afagar os teus fios de cabelo na ponta os meus dedos.
    Passaram-se muitas correrias para aquele banco debaixo da noite. Houvera uma vez em que nos abraçámos do início ao fim. Os meus braços cada vez mais compridos a sentir o teu corpo. O meu peito cada vez maior a sentir o teu peito, a dançar na tua barriga. E no culminar de uma outra noite, fui encontrar os teus lábios entre palavras caladas. Tu tinhas o encanto da primavera quando soube que era amor, quando soube.
    Depois desse beijo e de muitas manhãs a lembrar, desencontrámo-nos. Perdemo-nos entre o nevoeiro que desaparecera. Talvez nos tenhamos escondido um do outro, com medo do dia, com tormento de sermos taciturnos à luz do dia. Tivemos medo.
   
    Numa tarde de verão, já longe da primavera do teu cheiro, encontrámo-nos por fim numa esplanada em porto de mar. Era dia e era sol. Um calor hormonal que se despia quando supúnhamos ser novamente, juntos, completos. Era dia e era sol. Longe do banco que hipotecámos, conversámos sobre o passado, este que lembro agora. Fumámos cigarros para resguardar o tempo. Mas o tempo tem brechas, tem falhas sem perdão. O tempo é um abominável abstracto que tem uma fúria sem desculpa. E eu culpo o tempo.
    Não era fim de tarde quando nos aborrecemos com a esplanada e resolvemos subir aquela escadaria indefinida. Sem término. Contei vinte e oito degraus e dei-te a mão. Segurei a tua mão, mais pequena que a minha, mais arranjada, mais delicada. E pedi desculpa. Pedi perdão pelo tempo e apertei-te a mão. E senti a amargura de ter perdido para o passado. Senti o fogo que nos juntou, nos afastou. Senti que viveria na tua mão o tempo que quisesses. Senti. Senti.

    Voltei a ver-te ontem. Quis roubar-te daquele momento e dar-te a mão pela imortalidade do tempo.

Comentários

  1. fico deslumbrada, sempre que te leio.
    não esqueças de anunciar o nascimento do filho.
    M

    ResponderEliminar
  2. A simplicidade da tua escrita torna-a doce,muito doce...
    é desta forma que saboreio as tuas palavras e este tão nobre texto.

    Parabéns!

    R.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares