As mãos



Chegaste cedo esta noite. Nem me deixaste sentir a tua falta, já estavas ao meu lado quando comecei a sublinhar as tuas saudades. Entraste devagar e eu não deixei os teus olhos sozinhos. Estávamos tão sublimemente juntos que nem reparei na mesa onde nos sentámos. Uma carruagem-bar que houvera esquecido na memoria de adolescente, quando em promessas disparatadas repeti vezes sem conta aos meus amigos: hei-de sentar-me aqui com um grande amor.
O ambiente de cabaret francês, pela pouca luminosidade, pelos bancos aveludados, vermelhos. Mesas riscadas por unhas apaixonadas e odiosas, castanhas escuras e algum brilho. Um empregado rigoroso, de camisa branca e colete preto, com pés informais e sotaque legalizado e próximo. Algumas pessoas distribuídas pelos espaços, a fumarem a inutilidade. Casais sem conversa, sem réstias de paixão. Casais que se esqueceram de dizer amor. Homens e mulheres de olhares distantes e de silêncios prolongados. A sua maioria rendidos aos dissabores da doença rotina. Porém, entre o aperto do fumo de cigarros, um casal de mãos dadas. Atrás de nós, um senhor extremamente bem vestido, demasiadamente bem vestido, de fato completo, a segurar as mãos de uma senhora de casaco espumoso e plastificado. Uma gentileza grande nos lábios secos do senhor de fato completo, a dizer futuro, a querer o futuro, a sonhar com o futuro. E ela, a senhora de casaco espumoso, a não acreditar no futuro, a não imaginar o futuro, a saber o seu lugar de amante, de preenchimentos temporais poucos. Mas ambos de mão dada, a retirarem o momento. Uma gentileza tão bonita entre esse casal sem futuro e com um tremendo presente.
Reparaste primeiro do que eu nesse presente vivido por dois amantes. Olhavas incessantemente e sorrias. Deduziste logo que no meio de tantos casais, aquele que junto tinha mais idade, era o mais apaixonado, o mais demonstrativo do que é ser terno. E contaste-me. Soubeste conversar comigo sobre o caso e deixaste-me ser o escritor. Naquele diálogo percebi tanta coisa entre nós: que observavas coisas simples, que os teus olhos viam o que os outros não chegam a alcançar, que os velhos também têm paixão dentro, que eras igual a mim, que eu esperava por ti, que não seríamos como os casais silenciosos.
Pouco tempo depois, pedi as tuas mãos. Enquanto te guardava, para nunca mais te esquecer, deste-me a tua mão direita e depois a esquerda. Eu senti uma compaixão desmedida nas tuas unhas arranjadas. As minhas mãos desgraçadas tremiam a comprovar que nós existíamos. Naquela mesa, pouco restava do tempo. Como se lá fora a ondulação tivesse parado, como se a música não progredisse.
Tu és tão bonita. Disse-o imensas vezes para que não te esquecesses de mim.
E deixei-me estar a segurar as tuas mãos. Enquanto tu descrevias a beleza das bailarinas de Degas. Enquanto lias os pecados líricos do Eça. Enquanto descrevias uma exposição de pinturas a óleo que te tinham assombrado em Leiria. Enquanto entregavas toda a tua sabedoria ao meu colo, eu amava-te redondamente, eu amava-te num circulo que se repete. Eu estava a amar-te em todos os saberes que explicavas.
Não existem mulheres como tu. Os teus olhos negros e a tua pele amena, morena. Os teus lábios a descreverem arcos enquanto falavas, com uma beleza que só os declamantes de poesia sabem fazer. O teu cabelo a chegar-te perto dos olhos, a desviar-se numa curva que atravessa no momento certo. E os teus dentes, na simpatia de quem esconde um beijo imortal. Não existem mulheres como tu. Foi o que pensei. É o que penso agora que lembro tudo. Nunca tive espaço para receber alguém como tu. Talvez a vergonha de não ser tanto como podia ser. Talvez a vergonha de ficar-me pelos livros e desenhar a perfeição que só nas palavras inventadas de Mia Couto.
Tantas vezes adormeci a escalar um vale de imaginações, um rosto de índia a esvoaçar um cabelo negro, negro, um corpo com estrofes escritas, rimas ricas nas coxas e uma métrica a subir pela barriga e a contornar o peito, e seda, muita seda no pescoço a clarear-se nos lábios iguais aos teus. Adormecia sempre que chegava perto. E fui deixando de acreditar que algum dia pudesse tocar alguém assim.
Como poderia imaginar que de um momento para o outro, sem ser a dormir, tu estarias sentada ao meu lado no carro, junto ao rio, a deixar para trás um passado inútil. A segurares a minha mão e a olhares para mim. Eu sabia que olhavas para mim. Estava a ser feliz quando escolhias o meu rosto em vez do rio e da ponte. Somos serenos. A conduzir, a ouvir música, e tu sentada ao meu lado, a respirar perto de mim. A contares poemas escritos sobre pontes que te significavam. Tu a contares tudo e eu a julgar que poderíamos fugir os dois, ultrapassar as distancias de estrada e sentir o topo dos sonhos em cima de uma ponte infinita. “Andar por cima do mar”, como me soam tão bonitas as palavras ditas por ti. Acreditei logo que o Lobo Antunes estava certo quando dizia sobre as sombras que se faziam no mar. Se calhar éramos nós, distantes, a procurarmo-nos, com uma pressa tal que nos esquecemos de olhar para o mar onde viviam as nossas sombras.
O caminho foi-se encurtando até à casa onde prometera deixar-te. Encostei à berma e não desliguei o carro, para não parecer demasiado ambicioso, para não apressar o beijo que aconteceu. Pedi-te um abraço, para levares o meu cheiro para o teu sono. Pedi um abraço e tu soubeste segurar-me. Nunca ninguém me tinha abraçado assim, com um gemido de segurança, com um suspirar de saudades. Entre palavras que esqueço, aquelas que nunca mais vou esquecer: não gosto de despedidas. Eu a querer dar-te o resto dos dias todos sem um adeus sequer. Demos dois beijos na cara e na ordem dos olhos, encostámos os lábios um no outro. O beijo é o símbolo mais bonito do amor. Um beijo bastou-me para que agora estivesses em todas as esquinas da minha recordação. Um beijo que não esqueço, não vou esquecer.
Vi-te correr para a porta e, ao trancar o carro, senti que poderia ser novamente feliz. Procurei o meu caderno de apontamentos e sem o encontrar,  num breve sorriso disse para a noite: amo-te.

Comentários

  1. passei por aqui
    passo sempre por aqui
    e por ali

    faz-me tão bem
    ler-te

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  2. Fantástico,como sempre, para não variares! Gostei muito. :))

    Sandra Marques

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  3. (...)estes dois versos não me largam: que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
    (...)estes dois versos tocaram não sei onde no mais fundo de mim, e eu comovido como tudo, com lágrimas dentro. Porquê? Vou repeti-los mais uma vez dado que não cessam de perserguir-me: Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? É quase Natal (...)

    assim a tua enternecedoramente bela prosa poética: persegue-me.

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  4. .... concluindo o comentário anterior: citando António Lobo Antunes em "Quarto Livro de Crónicas"

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