Sonho-te

      


    Tinha-me esquecido que se podia sonhar durante a noite. Há muito que adormecia e acordava. Como um despertador que nunca toca. Fechava os olhos, adormecia sem dar conta e logo abria os olhos pela manhã. Como se não tivesse sequer deitado a cabeça sobre a almofada. Quando os cobertores me tapavam, já eu me levantava, colocando os pés descalços no chão frio do fim da madrugada. Sonhos, que fora feito deles. Julguei que os sonhos nasciam e morriam nos meus escritos. Sentenciava os meus desejos de sonhar quando arrumava o teclado e terminava de escrever. Sonhos deixados para trás. Sonhos que me esquecia de sonhar como é natural nos que dormes de olhos abertos.
            Esta manhã acordei diferente. Não me recordo de sentir a claridade a entrar pela janela. Sei no entanto que a madrugada se despediu da noite e estendeu-me nua para a manhã. No meu corpo senti essa devastação de corpos invisíveis: a madrugada e a manhã.
            Ao dirigir-me para o chuveiro, lembrei-me que estava feliz. Aquela felicidade que se vai acrescentando na lucidez, na sobriedade que acumula. Caminhava com um sorriso matinal que comoveu o espelho. Ao olhar para o reflexo que também me olhava de frente, estava feliz. Perdi o tempo em que me lembrava feliz.
            Na banheira, com o jacto de água a sucumbir no meu corpo, um calor a fervilhar no meu peito, um incendio de chamas pontiagudas no meu peito. E um sorriso enorme nas minhas pernas. E um sorriso enorme nos braços, nas pernas, nas mãos, nos dedos. Um sorriso enorme a subir as paredes húmidas, a chegar ao tecto, a fugir pela porta e a expandir-se por toda a casa. Um sorriso. Muitos sorrisos a cavalgarem dentro de mim.
            Escolhi uma toalha ao acaso, amarela e áspera. Sequei-me e fui até ao quarto ver se a roupa se recordava de mim. Ao abrir o armário, um cheiro a primavera a sair e a atravessar o quarto inteiro. As calças e as camisas a ganharem vida e a vestirem-se sozinhas, os casacos a morrerem por ser primavera, as camisolas a falecerem por não serem precisas. E eu de repente, vestido, aprumado para mais um dia infantil. Ténis azuis nos pés e o sorriso completo a subir-me pelo pescoço até à boca.
            Já na rua, com um abafado estranho para a hora, começo a passear até ao carro e uma certeza dentro de mim a dizer-me que uma felicidade serena quer rasgar o meu amanhã. Eu a entrar no carro e a luz a dar-me a lembrança do sonho. Hoje sonhei. Hoje sonhei e lembro-me do meu sonho:
           
            Entrei por uma sala com enormes estantes, livros com lombadas de mil formas, talvez uma biblioteca. Deixo a porta grandiosa nas costas e pela frente livros com muitas histórias, romances intactos, livros, livros. No fundo, na ultima estante castanha, entre o pó de lombadas escuras, estás tu, a segredar ao ouvido de um livro aberto. Consigo ver a cor da tua pele, ainda mais morena, iluminada por um fio de sol que os vidros te acertam. Os teus lábios a segredarem e a moverem brandamente, como um alento de não se querer fazer ouvir. As tuas maçãs do rosto a arredondarem para mostrar agrado. E ainda que não haja vento na sala, o teu cabelo flutua caridosamente, um negrume de cabelo a deslizar no fim dos teus olhos também negros, a terem um brilho delicadamente molhado. As tuas mãos a segurarem os dedos e a acariciarem a lombada do livro aberto, mãos pequenas que sei segurar. E um vestido vermelho, da tua preferência, a escolher o teu corpo para ser coberto, um vermelho a cadenciar as tuas pernas estáticas. Longe de ti, ali tão perto, caminho na tua direção, cada vez mais acelerado, impaciente, a querer chegar até ti antes que feches o livros aberto.
            Encontro-te. Não deste ainda pela minha presença, tens a atenção toda nas palavras que o livro te canta. Passo a minha mão ao de leve pelo teu vestido, pelos teus ombros, curvo no teu pescoço e descubro o fim do teu cabelo. Quando me fixo na tua cintura, tu viras a cabeça e sorris para mim. Revolves o tronco inteiro para o meu e beijas-me. Um beijo pequeno que traz tantas saudades. Lábios com lábios. Um passageiro beijo que deixa uma primavera de cheiros. Eu fecho os olhos e não quero estar a sonhar. Falas vagarosamente e explicas que o livro é muito bonito. Eu pergunto o autor e tu dás-me um novo beijo. Mostras-me a capa e o meu nome. O título e o meu nome. Beijas-me novamente, sempre pequeno. Abres a segunda página e o teu nome sozinho, entre um poema de Clarice Lispector.
Não quero estar a sonhar. Não quero estar a sonhar.
Olhas para mim com um carinho que não se pode escrever. Olhas para mim terna, suave. Olhas para mim e retiras outro livro da estante. Novamente o meu nome na capa e o teu nome na segunda página. O teu nome sozinho, entre um poema de Mia Couto.
Não quero estar a sonhar. Não quero estar a sonhar.
Passeamos de mão dada pela sala e floresce um jardim nas marcas que os nosso passos deixam. A sala a ser um jardim verde, repleto de flores amarelas e brancas. Algumas flores no teu cabelo, a pendurarem-se no teu cabelo negro. Nós a passearmos como namorados com medo dos deslize dos dedos, com medo do instante seguinte. A retirar-mos livros da estante e um milagre que convoca o meu nome em todas as capas, o teu nome em todas as segundas páginas, o teu nome sozinho seguidos de poemas de Neruda, de Al Berto, de Chico Buarque. Os nosso nomes a seres romances escritos por mim. Todos os livros do mundo de mim para ti. E eu a perguntar-me se existirão palavras suficientes para nos compreendermos. Se existem palavras suficientes para te fazerem sentir o tanto que sinto. Como se o amor nunca fosse demais, como se o amor pudesse florescer daquele jardim, daquelas flores, daquelas mãos.
Não quero estar a sonhar. Não quero estar a sonhar.
Fechamos a porta do nosso jardim e ficamos a flutuar no céu que está lá fora. As nuvens a reduzirem-se para que o azul profundo nos deixe encontrar os sonetos de amor que merecemos.
Não quero estar a sonhar.


Tinha-me esquecido que se podia sonhar durante a noite. Ao ouvir pianos no carro, lembrei-me que recordava cada parágrafo do meu sonho. Que me lembrava de cada gesto teu. Ao ouvir pianos, senti uma felicidade serena e voltei a adormecer para nunca mais voltar a acordar.

Comentários

  1. "Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato...
    Ou toca, ou não toca."

    Clarice Lispector


    Decididamente os teus textos tocam-me...
    Muito Bom Bernardo.

    R.

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