O envelhecimento



            Caminho com passos de paciência em direção à porta de saída do hospital. As pernas fracas de outras maratonas ultrapassadas. As sapatilhas longe de bailarinas, mais perto das varizes e de cansaço. A saia comprida a tolerar a falta de sensualidade pela idade, sempre pela idade. A porta mesmo à minha frente e antes dos meus braços sentirem o estimulo de se lançarem para a abrir, uma criança de caracóis despenteados, ranho pelo nariz despreocupado, a abrir e a segurar com uma simpatia adulta. A criança e os seus caracóis têm uma sujidade carinhosa na face. Um corpo pequeno de recreio, a lembrar os balouços com medo de saltarem até às nuvens, a lembrar os escorregas de chapa a ferverem na torreira do sol. Brincadeiras. A criança estática a esperar que eu passe.
            Obrigado. Agradeço e passo para o lado da rua, onde me esperam familiares famintos pela verdade. Perguntas que não quero responder. Netos com curiosidades. Filhos cansados de me saberem cansada. Filhos e netos a esperarem sempre pela morte que tarda em vir. Numa espera triste por terem amor. Numa espera que agradecem o adiamento por terem amor. Familiares que me querem abraçar, carregarem a minha mala de senhora independente.
            Junto-me à família que tem demasiadas horas sem dormir. Olho para todos os lados para perceber se falta alguém. Não falta ninguém. Na rua, onde as ambulâncias fazem transito, um doente mais doente que eu, mais novo que eu e ainda mais doente, vem algemado e na companhia de dois policias. Aquele doente decorado com uma cicatriz na testa, com dentes a mais ou a menos, algemado e infiel à liberdade. Um condenado que talvez tenha tentado um suicídio, um escape valente e corajoso de uma prisão-vida. Ou talvez tivesse tentado um novo homicídio, uma faca gritante numa barriga de vingança. O doente algemado olha-me nos olhos e tem uma malícia sorridente que me comove, pela ausência da realidade, pela falta de razão nos olhos. O doente algemado e sorridente que baralha o paradoxo e se confunde com uma metáfora literária.
            A neta mais velha, a mais bonita, abre os braços e faz-me encontrar a doçura. Abraça-me e não diz uma única palavra. Deixa que os tecidos me julguem, me questionem. Sílabas que não se fazem palavras. Silêncio.
            A minha nora esconde-se perto da ambulância primeira. Tem lágrimas no casaco, pequenas manchas que não quer esconder por nada terem de absurdo. A minha nora que me conhece muito para lá dos horizontes. Conversamos muito. Somos amigas que poderiam ter sido irmãs, não fosse o século diferente, irmãs que dormem e escrevem diários juntas.
            Perco-me no aconchego de tantos braços e desvendo apenas o perfume do meu filho: Afonso. Tem uma barba de pensador, recortada e alinhavada com rigor. O meu pequeno Afonso que roubou o nome e a ternura ao pai. Segura-me as mãos e quer saber como estou, se fiz tudo o que o médico pediu. Preocupa-se com a minha saúde e com a minha alma. Preocupa-se ainda mais com o meu coração. Diz que me deixou um livro em casa: Mataram a Cotovia, de Lee Harper. Promete que é o livro mais terno que leu. Sei que ele nada pode fazer por mim, mas os livros podem. Esboço um sorriso de velha e as rugas a ruminarem candidez. Beijo a barba do meu filho Afonso e nesse gesto quero dizer-lhe o significado da palavra mãe.
            Mais netos. Perdi a conta dos netos que fui conhecendo. Quando eles nasceram, já eu perdera a noção do carinho. Nasceram no tempo errado. Conheceram uma avó que não lhes merece. Eu sou uma avó demasiado velha e cansada para lhes contar o mundo. Uma avó com idade de bisavó. Demasiado velha e cansada.
            Despeço-me de todos eles e é a minha nora que me leva até casa, num carro que não ouve as músicas que gosto. Modernices que não ligam à nostalgia.
            Deixa-me à porta da minha casa de aldeia. Despeço-me a limpar-lhe as lágrimas. Ao sair, não falamos e ela compreende que eu terminei a idade. Os olhos embargados da minha nora prometem que nunca se esquecerão de mim. O anel que deixo no banco da frente promete que eu nunca me esquecerei dela. Bato com a porta devagar e o vidro esconde as palavras que deviam ter sido ditas.
            A minha casa é pequena. Tem tantas histórias nas paredes que basta colocar o ouvido e a cal geme a calma dos dias passados por ali. Olho para a porta de entrada e ao lado, a circundar toda a casa, um pequeno muro onde me sento. Sento-me e recordo o tempo em que me deixavas uma flor diferente todos os dias neste muro. Colocavas a flor e por baixo, uma quadra que escrevias ali mesmo, com o estimulo que dizias ser eu. Agora não existem mais flores no muro, só eu, sentada, velha e cansada. Mas tenho os ramos guardados e as quadras empilhadas debaixo da nossa cama. Nunca me cansei de as reler. Tu escrevias tão simples. Eu sabia que o fazias apenas para mim. Nunca te vi a olhar para ninguém. Nem daquela vez no baile em que dançaste com a da outra vila, nem nesse dia, em que dançaste e nem por uma única vez desviaste os olhos de mim. Dançavas e os teus olhos eram brilhantes a encontrar os meus.
            Levanto-me do muro e escolho uma flor do jardim. Coloco-a no muro e as tuas mãos quase que as sinto a segurar os ramos e a escrever. Juro.
            Entro na casa que é pequena e que sempre foi nossa. Foste tu que a construíste, mesmo sem qualquer arte de arquiteto. Com as mesmas mãos que escreviam poesia, construíste do chão ao tecto a casa que eu descrevera num sonho, naquele dia em que à beira do rio me deixaste adormecer ao teu colo, em que me acordaste com um beijo curto. À beira do rio, onde voltámos tantas vezes, à procura do meu sonho, para que tu desenhasses a casa com mais pormenores. Ao fim da tarde, nesses verões que nos aguardavam, conhecemos o rio que nos parecia sempre diferente. Eu via-te nadar nu, com o corpo adequado aos tempos, a mergulhar sem técnica e a nadar como se fosses parte da água. Pedias sempre para ir contigo, mas eu tinha medo, tive sempre medo que me percebesses que eu não sabia nadar. Nem era o corpo, que esse eu queria que soubesses todo, era o nadar, tinha vergonha de não saber nadar. E eu queria que me ensinasses a nadar. Achas que ainda vamos a tempo?
            Dentro do meu quarto, arrumo a roupa. Dobro tudo o que se espalhou com o tempo e arrumo no armário que ainda tem as tuas camisas. Não mexi em nada. Deixei tudo como deixaste. Talvez acredite que um dia te encontro a olhar para o espelho e a escolher o padrão que melhor se adeqúe ao meu vestido. Sim, fazias sempre isso, só te vestias depois de eu me vestir, querias combinar bem, querias que as pessoas tivessem orgulho no teu amor por mim. Preocupava-te que os outros desconfiassem que me amavas menos, como se isso fosse possível, como se alguma vez tivesses deixado de me fazer o melhor.
            Passeio-me pela sala e o sofá ainda desconfia que vás voltar. Guarda a forma das tuas costas. O banco onde colocavas os pés em descanso, está no mesmo sitio. Tudo por aqui te espera, como se as coisas pudessem ter saudades, como se os objetos sofressem de melancolia. Tudo te espera porque eras bom. Foste sempre bom demais com tudo o que abraçavas. A tua mota Casal, a que perdeste noites e noites a consertar, para depois o teu filho a afundar no rio numa loucura juvenil. Ficaste tão triste dessa vez. Nunca tinha visto os teus olhos tão tristes como nesse dia. Olhavas triste para o teu filho e a única coisa que conseguiste dizer foi: gosto muito de ti filho.
            Eu sinto tanto a tua falta.
            A cozinha é grande demais para mim. A chaminé traz agora muito mais frio. Desde que partiste que os buracos na chaminé são aberturas gigantes que me fazem sofrer os ossos. E eu sei, eu sei que se aqui estivesses nem o frio se atreveria a chatear-me, porque tu correrias atrás dele para me salvar, para me guardar.
            Ponho água a aquecer e penso em sopa. Legumes a alegrar a panela e tu como uma criança entre tantas, na companhia dos teus netos a fazer um barulho ensurdecedor com as colheres. E eu a reclamar com todos, demasiado velha para vocês, para ti. Já longe da meninice que tu sempre soubeste guardar em ti. Nesse tempo eu já não sabia brincar e nem o rio se ouvia dentro de mim. Envelhecia sem nunca recear que pudesses partir antes de mim. Não sofria e hoje tenho vergonha de estar viva por não ter sofrido.
            Apago o lume e deixo a panela com água perdida entre os bicos do fogão. Fecho a porta da casa pequena e despeço-me.
            Pego no ramo de flores que está no muro e junto-o as cartas que tinha guardadas debaixo da cama e que trago agora na minha sacola do tempo de escola.
            Ando devagar. Tenho cento e cinco anos e ando devagar. Sou uma velha cansada. O meu amor mudou de esquina porque o coração não aguentou. Acho agora, que morreu com amor a mais pelo mundo. Tu ensinaste-me a viver, a ter primaveras nos braços, a perceber a poesia, a ser uma felicidade que nunca pensei ousar. Mas não me ensinaste a nadar ou a viver sem ti. Como posso eu ser doente sem que me leves o chá fervido à cama, sem a tua mão na minha testa a medir-me a temperatura, a recitares coisas bonitas para que a doença não me leve. Partiste antes de mim quando sempre prometeste que não me largarias a mão. Não precisaste de igrejas ou padres para me jurar a eternidade dos olhos. Tu sabias que sem ti a fragilidade era imensa, que eu morreria a cada espaço que deixavas. Foste morrer no verão, quando sabias que o verão era o nosso recomeço. O verão durava uma imensidão de anos porque eu podia ver-te nadar nu no rio. Porque partiste sem mim.
            Vejo o rio mesmo à minha frente. Estou a fraquejar, a tristeza rouba-me e corta-me as veias, a tristeza faz-me golpes profundos nas costas, a tristeza fura-me os olhos e eu quero morrer.
            Tenho cento e cinco anos e estou doente. Sinto os pés à beira do rio e a doença descola-se do meu corpo. Enquanto o nível do rio sobe até aos meus joelhos, eu lembro o som da relva atrás de mim, o som amiúde da relva sempre que corrias em direção ao rio, levado por gargalhadas que me contaminavam. Tenho o rio pela cintura e sinto-te cada vez mais perto. O rio veste-me o peito e enquanto as rugas do meu rosto deixam de envelhecer, eu agradeço-te mais uma vez, por nunca me teres ensinado a nadar, por me teres mostrado que tudo é verdadeiramente belo.

Comentários

Mensagens populares