Uma esplanada longe do mar
A baixa chiado parece-me sempre alterada.
Nesta tarde não
foi diferente. Ao estacionar o carro numa rua secreta, deparo-me com outros
carros mal vestidos, marcas que nunca ouvi falar, carros com línguas
estrangeiras, carros com curvas de um outro século.
Subo depois, a
pé, a rua íngreme que culminará com a estátua viva de Fernando Pessoa. Viva
porque os pedintes lúcidos continuam a conversar com o poeta, sentado ao seu
colo, acariciam o rosto do poeta e tratam por muitos nomes, menos o verdadeiro.
O escritor sentado na eternidade do frio e hoje, na eternidade do sol. Sentado
e os moribundos, os sonhadores, a julgarem que a vida se perpetua nas estátuas.
Desço agora em
direção ao combinado. Mas antes de descer, observo as pessoas que andam rápido
sem ilusões, sem julgarem o dia como o máximo momento de existirem. Uma senhora
que esconde o rosto nos óculos de sol demasiado enormes para que só restem
lábios e queixo, a segurar uma mala que muda de feitio com a oscilações de
temperatura, sapatos de salto altíssimo quase um prego na calçada. Um bando de
rapazes utiliza palavras que substituíram as dos poetas, rapaziada com muitas
cores misturadas na roupa, nenhuma estética que combine com o padrão que tento
atingir. Um casal de homossexuais, a ser olhado por todos como se fossem
pedantes, doença andante, paneleiros, princesas. O casal esconde a paixão
debaixo dos sapatos porque o mundo não aceita que dói muito amar o contrário.
Um político de fato completo, parado entre a estrada e o passeio, a procurar os
olhos da segunda amante que se esconde na esquina, desconfiada de ser amante.
Alguns ocupas, de cabelos rastejantes, fios de cabelo que se juntam para ser
qualquer coisa entulhada, quase nojo, cabelos que pensam vir dos confins de uma
Jamaica utópica. Pessoas. Pessoa entre pessoas. A diferença cultural entre
todos e nenhum a saber que eu os observo para os escrever, para os lembrar,
para os não esquecer.
Vejo a entrada
para o café onde era combinado. Acendo um cigarro antes de entrar, tenho um
incendio nas pernas que se alastra pelo tronco e o cigarro tudo acalma. Fumo à
pressa, como se não tivesse sequer fumado. Entro finalmente, a voar por entre
pessoas. Procuro-te.
Estás sentada
na esplanada. Fica a faltar o mar para ser um conto de Vergílio Ferreira. Há um
tremor a caminhar ao meu lado, como um sismo que só eu sinto. Tu ergues o braço
e sorris como se isso fosse próprio de existir. Está um amigo contigo, sentado no
lugar que podia ser de qualquer um. Um amigo que cumprimento enquanto olho para
ti. Um passou bem. Antes, dou-te dois beijos e acredito que se chovesse naquele
instante, eu não daria conta. Escolho uma cadeira ao acaso e sento-me mais
perto de ti. Respiro fundo e para dentro segredo-me que tu és bonita.
Enquanto a
conversa deambulava pela esplanada, enquanto o café não chegava, enquanto muita
coisa acontecia eu olhava para ti.
Alguns metros
ao lado, um velho de idade indeterminada pelas rugas e pelo tempo, tocava
acordeão. Estranhei a falsa música que produzia. Estranhei até ao momento que
deixei de estranhar e me apercebi que tocava a Valsa de Amelie de Yann Tiersen.
Mais ninguém deu por nada. O velho e o seu acordeão a fazerem poesia com os
ouvidos e todo eu embrandecido por estar perto de ti.
No final do
acordeão, um outro gémeo do músico, mais velho ainda, a rastejar-se com um copo
em riste, a dizer que a música é uma arte grandiosa e que as moedas alimentam
todos os artistas. Eu ainda estava embrandecido quando tu abriste o porta
moedas, o tempo suficiente para eu ver fotografias dentro, abriste o porta
moedas e retiraste uma moeda de ouro para que a arte não morresse. E naqueles
minutos venceste-me. Queria ter-te pertencido naqueles minutos para te entregar
um beijo afetuoso.
Eu dei-te o
beijo dentro de mim.
Sobre a mesa,
um computador e phones para ouvir música. Um maço de tabaco que percebi depois
teu, um maço com a mesma marca que o meu. E tu rapidamente a fumares, num jeito
esmerado de fumar. Durante o fumo a tua voz mais rouca, a saboreares a tarde
que fugia, a contares aventuras que definem os teus dias. Sempre debaixo dos
meus olhos que escreviam já. Os meus olhos nos teus sapatos frágeis, rasos,
cinzentos, brilhantes. Os meus olhos a encontrarem-te de perfil, como na
fotografia. E tudo em ti a ter um perfeccionismo grego. Os meus olhos a escreverem
frases: és muito bonita; brilhas nos olhos; tens lábios de silencio com curvas
que falam; és diversão espontânea; és mais do que o imaginado.
E eu sempre
confiei nos meus olhos.
O dia diz-me
que são horas. Tu dizes que tens de ir: tenho de ir embora. O teu amigo diz que
tem de ir: tenho mesmo de ir embora. E eu fico. Fico a serenar a esplanada, na
esperança de ouvir Yann Tiersen novamente, na esperança que a música aconchegue
o teu rosto no lugar das minhas mãos, na esperança que o mar surja no horizonte,
na esperança que as nuvens formem as tuas linhas e eu possa adormecer devagar
no teu futuro.
ah... julguei que também tinhas ido embora!
ResponderEliminaronde andaste?!
gosto tanto de te ler!
abraço.