Amor tardio

   

    Se eu tivesse acordado mais tarde, faltaria ao jogo dos miúdos e eles tinham vencido por muitos golos, mais golos que minutos. No fim da partida, seria outra pessoa a cumprimentá-los, a dizer-lhes: grande jogo, vocês valem tudo.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, depois de saber que os miúdos tinham ganho o jogo por muitos, eu tinha ido almoçar sozinho. A minha mãe não estaria à minha espera com o cozido à portuguesa, muitas carnes que desconheço os nomes, muitos chouriços que gosto mas não percebo a origem. O meu padrasto não teria falado comigo sobre o jogo do Benfica no dia anterior e eu não teria argumentado que o futebol por vezes é injusto, triste. Não me teria sentado à mesa com a minha mãe e o meu padrasto, e os dois calados na fome de saborear aquele cozido que em minha casa se planifica na sexta e se almoça no sábado.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, não tinha ido ao jogo dos miúdos, não almoçaria cozido com a minha mãe e com o meu padrasto, não perguntaria ao meu padrasto o nome das carnes e dos chouriços nem quereria argumentar sobre o Benfica do dia anterior, não tinha ido a correr para casa para tomar um banho repentino e colocar-me no ponto cheiroso do romantismo. O banho teria sido guardado para muito depois e eu não teria vontade de me vestir a rigor de estilo, nem o perfume seria gasto no meu pescoço e na minha roupa e nos meus pulsos.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, o perfume não tinha saído da prateleira dos perfumes e eu ia continuar vestido de fato treino sem cheiro. O meu quarto seria um convite para o meu cadeirão e a música seria a minha única companhia naquela tarde. Eu tinha adormecido pelas 15h e a tarde passaria por mim como uma brisa, como uma sesta.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, faltado ao jogo dos miúdos, ao almoço, ao cozido, aos enchidos, à minha mãe e ao meu padrasto, eu teria adormecido à tarde porque estaria sonolento e adormeceria pela tarde fora e faltaria ao encontro marcado, contigo, ao encontro marcado por nós naquela tarde de cinema.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, não tinha entrado no carro completamente apaixonado pelo dia, ligado a ignição completamente apaixonado pelo dia. Não tinha colocado o pé na embraiagem e soltado suavemente para que o arranque até ti não fosse sentido. Não tinha descido a rua em ponto morto para ganhar velocidade para logo depois virar à esquerda e ir de encontro à tua rua, ir de encontro a ti. Aquela tarde não era contigo e eu não te tinha deixado entrar no meu carro e não tínhamos ido ao cinema.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, não te tinha levado ao centro comercial para irmos ao cinema, como pretexto para entrarmos numa livraria e eu ficar a conhecer o teu género de leitura. Não tínhamos parado na estante com a fotobiografia da Frida Kahlo. E tu não terias aberto o livro de poemas do Eugénio de Andrade a indicar o poema mãe, a indicar o outro poema e as palavras gastas e os olhos verdes.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, eu teria ido a uma livraria no final do dia, sozinho, comprar um livro de David Mourão Ferreira, talvez Os Amantes. E tinha perdido horas nas estantes da livraria como alguém perde tempo numa carícia, num peito, numa curva.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, não tínhamos saído da livraria tão tarde, eu não teria tempo para apreciar a tua pele em contraste com as páginas de muitos livros. Não passaríamos o alarme da livraria quase próximos como amantes. Os bilhetes de cinema não seriam pedidos em conjunto e a senhora não perguntaria se pagaríamos assim, juntos. E as nossas mãos não tinham ficado indecisas sobre quem guardaria os bilhetes, quem guardaria os nossos lugares, juntos.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, eu seria uma solidão crua na sala de cinema e o filme seria a minha companhia única. Não estarias ao meu lado, e o meu sentido não estaria vincado para pousar a mão direita na tua mão esquerda. Não apertaria a tua mão com carinho fortalecido. Não teríamos olhado um para o outro no negrume da sala de cinema e aqueles lábios nunca se teriam conhecido.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, teria saído a meio do filme porque estaria aborrecido. A senhora dos bilhetes olharia para mim com desdém e eu teria vergonha, baixaria a cabeça no negrume da sala de cinema com vergonha e não olharia para a senhora dos bilhetes. Não estarias ao meu lado para não sentir vergonha, não tinhas sorrido para mim como alento, como um dissipar de dúvidas. Eu sairia sozinho com vergonha.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, não te tinha deixado na tua rua e mesmo antes de saíres do carro, não te tinha dito: Amo-te. Não tinha dito nada porque já estaria em casa sozinho e com vergonha. Não te tinha dito aquela palavra.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, não tinha ido ao jogo dos miúdos, o almoço em família não tinha acontecido, eu não cheiraria ao meu perfume de adolescente, não haveria sala de cinema que me aturasse, não teria dito aquela palavra, não teria ficado contigo mais quatro anos, não teria dito aquela palavra durante quatro anos, aqueles lábios nunca se teriam conhecido, eu não teria dito aquela palavra tantas vezes, não teríamos sido.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, tu nunca terias aparecido no meu caminho e eu nunca te iria procurar. Não tinha gostado de ninguém e hoje talvez não fosse escritor nem professor. Não estaria agora a escrever esta narrativa sem sentido. Eu não seria eu, simplesmente porque eu sou aquilo que sempre me deixaste ser, aquilo que sempre me ensinaste a ser.
    Se eu tivesse acordado mais tarde, ainda assim, eu teria saudades tuas e dir-te-ia: Amo-te. Repetiria aquela palavra tantas vezes quanto pudesse. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Até tu ouvires. Até tu perceberes que mesmo se eu tivesse acordado mais tarde, eu iria encontrar-te para repetir aquela palavra. Amo-te.
    Se eu tivesse acordado mais tarde nunca seria tarde demais para nós.

Comentários

  1. Things were very hot that year... All the wax was melting on the trees... He would climb balconies, climb everywhere. Do anything for her... Thousands of birds. The tiniest birds adorned her hair... Everything was golden... One night the bed caught fire... He was handsome, and a very good criminal... We lived on sunlight and chocolate bars... It was the afternoon of extravagant delight...

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