Lábios de silêncio



            Desço a Avenida Jaime Cortesão, Miraflores. O meu carro nesta noite perdeu a cor cinzenta que sempre conheci. Podia ser um carro de mil cores, a berrar contentamento pelas mão que apertavam o volante. Muitas cores e eu leve, leve, a descer para um caminho que me tinhas indicado sem certezas.
            Ao encontrar a rua das coordenadas, leio o pedaço de pedra que me fala sem voz, com palavras: é aqui, é aqui.
            Tenho as mãos no volante e um livro de Vergílio Ferreira de capa castanha a clamar-me baixinho, como um coro tímido, talvez seja o autor a adivinhar a razão pela qual eu o li tantas vezes. Para Sempre, Vergílio Ferreira.
            Encontro um lugar de vergonha, em cima de um alto passeio e o meu carro, outrora cinza, grita para eu travar, para travar, para não magoar as jantes, os pneus, o interior.
            Subo o alto passeio e não faço a mínima ideia se estarei no sitio certo. Mas nunca nada é certo desde que me iluminaste. Desde que uma luz própria de tu existires me abraçou os olhos. Desde que a franja do teu cabelo desligou o meu escuro. Desde que as tuas maçãs do rosto me alcançaram. É tudo incerto, sem peso, sem medida, sem razão. Fracturaste o meu passado porque ele não existiu, antes de ti não existiu.
            Ouço o telemóvel tocar. Uma mensagem tua a dizeres que estou bem. Que estamos muito perto. Quase os cheiros juntos. Estou no sitio certo.
            Respiro fundo, como nunca faço. Abro a porta do carro, agora colorido, e ao sair engasgo o pé direito e tropeço no esforço apressado de te encontrar.  Sorrio. Procuro-te entre os imensos prédios e nem um sinal da tua pele morena. Volto a olhar para o telemóvel e de novo palavras tuas: olha para cima!
            Antes de levantar a cabeça, suspiro e realizo-me em segundos que não conto. Quero olhar para cima mas com um sorriso que te faça perceber o quanto és para mim. Sorrio. Sorrio ao encontrar-te numa espécie de varanda, também a sorrir. Em menino, criança, o Romeo e Julieta era uma farsa dos amantes frustrados. Na minha infância não haveria nunca lugar para o amor em varandas. Imaginação de um autor que desconhecia o nome. Palavras, lirismos que terminavam sempre com o romantismo mentiroso. Mas agora, ao olhar para ti, no cimo da varanda, com a franja a cortar-te o rosto, a timidez altiva dos teus lábios, a tua face escondida na noite, o teu perfume no céu, tu, o meu amor. Os meus olhos mais altos que o meu corpo, a tecerem poemas espontâneos e a faltar-me o caderno de apontamentos, palavras de lápis embriagado de amor.
            Pergunto breve, como chegar até ti. E tu não respondes, com medo da tua voz quebrada pelo frio. Mas eu encontro o caminho, as escadas, qualquer coisa que me deixe perto do teu corpo. Afinal, esperei 28 anos para te encontrar e nada haveria de travar o momento ansioso que crescia dentro de mim, desde o ventre, desde o nada.
            Perto de ti.
            Uma pequena parede a separar as minhas pernas das tuas. Uma pequena parede que impedia tudo menos os meus lábios no teu rosto. Não sei se disse boa noite. Talvez tenha pensado, mas os teus olhos estavam tão perto dos meus que me esqueci que existiam palavras. Foram dois beijos de uma ternura que não se faz já. Uma ternura do tempo das cartas de namorados, do tempo dos amantes pobres, do tempo das mãos dadas em flores, do tempo dos sentimentos na frente da racionalidade.
            Não sei quanto tempo passou. Lembro de fumar e de ver-te fumar um fino cigarro de mentol. A tua avó a recordar-te. Uma história que contaste cheia de brandura, sobre o modernismo da tua avó, senhora de vanguarda que conduzia um descapotável, primeira mulher a usar calças na aldeia, a fumar cigarrilhas de mentol sob o olhar atento do teu avó. Tu a contares a história de outras gerações e eu a saborear cada pedaço, como se no tempo houvesse sempre espaço para observarmos todas as pessoas que existiram, sentados os dois, eu e tu, numa qualquer sala de cinema, de mão dada como tu adoras, a ver a vida dos antepassados e a decorarmos cada gesto, para nunca nos enganarmos no amor. A tua avó que agora tenho pena de não ter conhecido, que haveria de gostar dos poemas que escrevo para ti.
            Amo-te.
            Estou a segundos de te ver partir. Falas baixinho e eu sei que temos pouco tempo. Penso que ficaria bem no cenário que inventámos, um beijo. Penso em segurar-te os dedos e sem medo do futuro, encontrar a tua boca na minha e dizer o quanto me fazes falta naquele momento. Quero escrever no teu rosto o meu amor por ti. Na falta de uma música no ar, sussurro ao vento que me empurre e me liberte. O vento que é sempre culpado de tudo, de crescermos, de morrermos. O vento que não assobia naquele momento com receio que nos assustemos e deixemos o amor escapulir pelas traseiras da nossa distração. Um beijo. Queria um beijo para saber que guardarias um pouco de mim no teu dormir. Um único beijo.
            Tens de ir e eu sou feliz. Ao ver-te marcar o código da porta, digo que vou ficar a olhar para ti enquanto partes. Decoro as tuas botas castanhas e a simetria do teu sorriso. Estás tão nervosa que a vergonha não te deixa olhar para trás. Abres a porta e é nesse exato momento que entendo o mundo. Ao fechares a porta, recebes o meu beijo esvoaçante e eu entendo o mundo. Percebo porque razão me fui fazendo homem tão devagar, a subir idades por textos que desconhecia o propósito. Percebo a barba no rosto, o drama de envelhecer sozinho, a melancolia do que ainda não teve tempo de acontecer. Sinto que se passaram décadas pelos meus braços. Que todos estes anos se abriram para que tu aparecesses, para que tudo agora fizesse mais sentido. Ao ver-te receber o meu beijo, tenho guardado na palma da mão um futuro que se enche de amor, amor, amor.
            Ao regressar para o carro, de cabeça metida para dentro de todo o encanto de ti, sobe-me uma vivacidade que desconhecia. Tinha escrito um livro. Um livro de contos amorosos. Um livro que agora não tinha mais esperança. Um livro que escondia um segredo maior que o Homem. Eu tinha escrito tanto sobre tudo e havia esquecido que nunca fui profeta e que as metáforas eram todas uma memória de ti.
            Amo-te. No silencio absurdo do meu carro o vento entra pela janela e diz-me: Amo-te. O vento entra nos meus lábios e sou eu que ao acender um novo cigarro grito ao mundo que te descobri, que te amo.

Comentários

  1. Acho que qualquer pessoa merecia ser amada assim... que texto fantástico. Adorei. :))

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