A espera no tempo




a sala de espera respirava pessoas ansiosas. nas paredes brancas havia música a querer furar a tinta e a estrutura. no rodapé, de volta da sala, qualquer coisa imperceptível ruminava. 

no centro da sala, uma senhora de cabelo já branco, já cansado. a mão de cores doentes e fragilidades imensas, o sangue a enganar-se nos caminhos do corpo. uma senhora de cabelos já brancos, a segurar um terço sem cristo, a apertar com a força de quem nunca acreditou nos enganos e nas evidências do padre de água benta na saliva. a cruzar as pernas como se as cruzes não fossem suficientes. a empurrar os olhos na força de se fecharem. a encolher os lábios para dentro, como se os dentes demónios a rasgarem a carne. 

eu do outro lado, no balcão, indiferente a tudo. a pensar sobre no terço sem cristo, a adivinhar a dor do instante. a assinar folhas a tinta preta, a fingir o luto, a fingir. 

a senhora de cabelo já branco, a olhar com as pálpebras, amedrontada, para os pés rastejantes sobre o chão, os pés a saírem do gabinete sufocado por velórios. o marido lento, a procurar sofregamente as mãos de cores doentes da esposa. o marido lento a querer correr. o marido lento a correr na imaginação e a pausar longamente na realidade de não o poder fazer mais. o marido lento, a encaminhar-se curto para a esposa. 

eu do outro lado, no balcão, a escrever na mesa, a registar a maior história do mundo.

a senhora de cabelo já branco, a levantar-se, a desgraçar as profecias, a retirar a cruz das pernas, a largar o terço sem cristo na cadeira, a ter o marido lento a um palmo e a vida inteira.

o marido lento a chorar. 

(é demasiado triste quando um homem velho chora)

o marido lento, a caminhar por fora, a correr por dentro, a querer as mãos de cores doentes da esposa. a aproximar-se em horas. e o doutor Abecassis a fechar a porta: com licença.

eu do outro lado, no balcão, sem rosto. 

e quando se encontraram no término da caminhada de ambos, não se abraçaram. ficaram a ver-se. ficaram a reconhecer-se. ficaram a comover-se. ficaram sem saber o que dizer. ficaram sós. 

permaneceram a sós. e essa solidão a dois só terminou quando a senhora de cabelo já branco passou a mão de cores doentes pelo cabelo grisalho do marido. a fazer caricias contínuas no cabelo grisalho e a dizer apenas para ele ouvir:

- deixa estar. havemos de ficar bem. 

e o marido lento, com lágrimas nos joelhos ainda dobrados, de costas curvas, de braços nos pés. o marido lento a lembrar 

(quando eras uma noite imperdoável, quando a minha mãe me deixou e tu ficaste, quando o meu pai adormeceu e tu ficaste sempre acordada, quando escolheste o nome do que nascia de nós, quando corrigiste os poemas que escrevi na parede do quarto, quando me deixavas adormecer nu, quando te passeavas sem cuecas pela sala, quando te vestias das flores que te oferecia, quando me deixaste envelhecer, quando vestiste a saia encarnada, quando hoje)

e eu do outro lado, no balcão, sem rosto.

- o doutor disse dias. e eu acredito nos dias. eu acredito fomos dias. e queria que viesses comigo. eu só vou se vieres comigo. só vou se trouxeres a saia encarnada.

e eu do outro lado, no balcão, a ver o marido lento e a senhora de cabelos já brancos, a abandonarem a sala, muito devagar, tão devagar quanto os dias, até virarem para a rua e os olhos se perderem.

levantei-me do meu lugar para escrever nas paredes brancas que a música já tinha partido, para tentar ouvir os dias na voz do marido lento e da senhora de cabelos já brancos. 

cheguei tarde. na rua, entre o frio do inverno e o vento do outono, apenas uma rapariga de cabelos longos e negros se passeava debaixo do olhar de um marinheiro de farda completa, embaciado pela saia encarnada que tinha o cheiro do tempo.

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