Era muito simples




era muito simples: eu comprava os bilhetes depois de sair do emprego. haveria tempo para comprar dois maços de tabaco, 

(que nos concertos fuma-se sempre em demasia)

tu atenderias o telefone, a estranhar que fosse eu a ligar. aprendeste c
edo demais esse segredo de nunca falar ao telefone. 

(sempre tive medo que a voz perde-se palavras pelo caminho) 

falaríamos um pouco dos nossos dias. eu falaria do hospital, dos doentes quase em cura milagrosa, dos médicos que se perdiam por enfermeiras, por enfermeiras que se perdiam por pacientes do mesmo sexo, por transplantes que se enganavam no dador, por coisas insignificantes mas que tu darias toda a importância porque éramos assim um com o outro. parvos que sabem conversar. 
falaríamos um pouco dos nossos dias. tu falarias dos meninos que te entraram pela sala, carregados de flores no lugar dos dedos. dos meninos que aprendiam a escrever o nome ao contrário. dos meninos que te pegavam ao colo porque tu eras breve dentro da sala de aula. falarias das pinturas de guerra que exaltavam o inverno como o verão invertido. ao telefone, dirias todas estas coisas porque eras parva como eu. a falar de coisas que te eram dignas. 

estaríamos mais algum tempo ao telefone, sem falar, só a percebermos a presença um do outro. a sentirmos a presença um do outro. na distância, a presença um do outro.

havíamos de nos despedir com um lento: até já, encontramo-nos à porta do coliseu. e beijos. muitos beijos. de palavra e de som. 

era muito simples.

eu compraria os bilhetes pelo caminho. no mesmo caminho haveria tempo para comprar um presente. no mesmo caminho haveria tempo para te escrever um poema curto.

tu sairias da escola, de mochila às costas, a imitares os teus alunos, a fingires que era carnaval. entrarias no teu carro pequeno e antes de olhares para o espelho, pensarias que eu seria o namorado do resto das noites. e fechavas os olhos para que eu ouvi-se o que estavas a pensar.

(eu estaria a ouvir)

olharias então para o espelho e sem nenhuma vaidade, estavas bonita.


à porta do coliseu, como combinado, eu já esperava por ti. gostava de esperar por ti porque nasci antes de ti e cresci a esperar. tu conseguirias ver-me com um embrulho na mão, mal feito, sem nenhum rigor manual. haverias de pensar que os meus poemas eram bem mais bonitos que as minhas mãos. mas não dizias porque não me querias entristecer. 

já estaríamos perto e antes de qualquer beijo, teríamos segundos de um olhar. a nossa forma de olhar era tão singular que o silencio nunca conseguiria roubar o futuro que guardávamos. 
depois o beijo. como dois parvos que se beijam nas ruas, encostados a paredes, quase escondidos. o beijo desamparado. 

entraríamos depois de mão dada pelo coliseu. a subir as escadas de mão dada. a pisar a carpete vermelha de mão dada. a entrar no escuro de mão dada. a escurecer-mos juntos de mão dada. a sermos a presença um do outro de mão dada.

sentados nas poltronas do coliseu, ainda sem o fado, eu chegava a minha mão à tua perna. tu haverias de sorrir na timidez. e eu dizia: gosto de ti no muito que tenho para gostar. e tu haverias de sorrir na timidez.

a fadista subiria pouco depois ao palco. acenava para ti porque era tua amiga. e porque eram cúmplices, ela haveria de perceber que o teu sorriso explicava a eternidade ao meu lado.

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