De como és diferente




sabia perfeitamente as coisas. nada disto seria correcto se não o tivesse previsto. era como as tardes que nunca se imaginam, a ouvir Bach e Brahms nas aulas de educação musical, com a professora quase careca a fingir
um penteado moderno. eu ouvia, sossegado na minha mesa e carteira de aluno desassossegado, fingia que comovido. a professora acreditava e eu sabia previamente que aquele teatro todo seria justo quando homem.

como tentava escrever, eu sabia que tudo era assim. quando te conheci sabia que eras diferente. por isso sabia que te escolhia. sempre escolhi as aproximações da ternura. cheguei-me a ti porque eras diferente. não eras como as outras.

as outras não sabiam sentar-se na cadeira da sala de aula. eram invejosas com os cadernos e tinham demasiados lápis. nenhum servia para emprestar. as outras eram invejosas.
as outras cresciam logo quando aprendiam a ter rabos grandes. começavam logo a seduzir a rapaziada no recreio e a justiça era serem logo abraçadas pelos delinquentes primários que chumbavam anos a fio.
as outras eram diferentes porque nunca se deixaram ser adolescentes. foram logo para idades adultas, sem passar pelas bandoletes, os ténis coloridos, as cartas de amor: o namoro dos pobres.
as outras já não me interessavam.

por isso sabia que te escolhia na perfeição dos dedos. tinhas logo qualquer coisa que te mostrava singular. não era a idade. não era nada visível. não era nada invisível.

as outras gostavam das discotecas barulhentas. as danças com musicas que nunca percebia. as outras gostavam do som e do chão a tremer, das luzes a incidirem nos rostos de beleza nocturna. as outras gostavam de sair pelas noites na busca de um príncipe que fosse mudo.

as outras não apreciavam os livros nas estantes. gostavam das capas. as outras gostavam das capas porque não gostavam de aprender. as outras aprendiam a ler pelas letras fáceis dos principes mudos.

tu eras diferente até quando lias os contos do Miguel Torga. sabias fazer uma voz diferente quando distanciavas o Principezinho da Raposa. como se as vozes sentissem coisas alternadas. os verbos tinham um tom. os adjectivos tinham outro tom.

as outras julgavam o Saint Exupery por um perfume francês. quase certas de que a França pouco exportaria para além da moda de vestidos e boinas.

as outras eram demasiadamente bonitas.

tu eras diferente. podias estar à chuva na paragem, longe de pensares no tempo que o autocarro demoraria, porque a chuva era o que contava naqueles instantes. a sonhares que alguém te trouxesse um abraço em vez de um chapéu de chuva.

as outras nunca cantaram à chuva.

tu eras diferente porque conhecias o cinema europeu. choravas na sala de cinema porque o Marlon Brando era um poeta. perdias tempo nas salas de cinema porque o filme só terminava quando a sala ficasse vazia. vias os nomes dos actores a passarem. ouvias a banda sonora final. tudo era história até que todos saíssem e ficasses tu. diferente de todos.

as outras entravam tarde na sala de cinema e saiam cedo. nunca choraram com cinema francês.

tu sabias ser bonita de manhã. como sabias ser durante todas as estações do dia. porque não ligavas ao que vestias tudo te ficava bem. bastava um risco nos olhos, dizias tu. basta um risco nos olhos e a beleza é universal.

tu eras diferente porque eras bonita nos dias.

as outras perderam tanto tempo à procura de batons, de calções-cintos, de acessórios em demasia, de sapatos de coleccionadoras, de tanta coisa inútil que se tornavam ainda mais inúteis.

eu sempre soube que eras diferente.

as outras nunca perceberam que o amor não existe. as outras sempre se perderam com as facilidades do carinho e da boa vontade dos amantes. as outras nunca souberam o que é adormecer nas palavras. as outras nunca perderam tempo a olhar para si mesmas durante a noite. as outras são todas iguais porque não perceberam que o amor não existe.

as outras sabem que a beleza dos homens está nos lábios caridosos, nos corpos de exercício forçado, nas roupas berrantes dos estilosos de cabelos incertos.

as outras não perceberam que o amor não existe em príncipes mudos.

e por isso lembro-me sempre de como eras diferente. tão diferente das outras que me forçam a estar sozinho.

lembro-me sempre que eras tão diferente que nunca exististe senão quando adormeço.

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