Olhos de amor




o Julio usava sapatos de verniz. desde que na primária a vaidade. desde as professoras inquietas nos corredores a suspirarem. desde as idas com as tias à praça de domingo e as senhoras de peitos descaídos a cheirarem a mar. desde o café planalto e os alcoolizados matinais e a inveja

- deixa ver se a beleza não te chega.

depois a empregada meio romena meio africana, indefinida, em mau português a guardar os sapatos de verniz na memória para depois na noite, quando deitada com o marido segurança, um orgasmo mínimo que seja.

o Julio pouco queria saber das professoras, das senhoras de peitos descaídos com cheiro a mar, dos alcoolizados. interessava-lhe a empregada meio romena meio africana.

o Julio apaixonou-se cedo. 

era de manhã. o avô comprava o jornal A Bola. sentavam-se no lugar do canto, onde se conseguia ver a televisão anã. pediam uma torrada para dividir.

(o avô deixava sempre a parte do meio para o neto)

e no meio da manteiga que suava os guardanapos, havia sempre um pouco de tempo para olhar para a empregada. o avô jurava que ela tinha olhos de amor.

- neto, ouve o que o avô te diz, aquela ali dava conta de ti. uma mulher de 38 anos faz de ti o homem que nunca foste.

o Julio percebia aquela sabedoria. dentro do Julio, a empregada tinha olhos de amor. porque era essa a explicação do avô. 

a manhã só terminava quando a avó se chegava perto da porta do café Planalto.

- vamos almoçar. e depressa que tenho pressa.

sem reclamar, nem um nem outro, a arrumarem a mesa, a descansarem a empregada com olhos de amor. a deixarem a o resto da torrada ao balcão. a deixarem os olhos de ternura lasciva no balcão e nas pernas da empregada.

o Julio apaixonou-se cedo.


foi assim durante muitos anos. a cumplicidade do Julio e do avô em parceria com a intimidade imaginária de uma empregada com olhos de amor. 


um dia o avô morreu e o Julio aprendeu que chorar é falar com os mortos.

nesse dia, depois de ver o avô deitado num caixão castanho, o Julio engraxou ainda mais os seus sapatos de verniz, pediu uma flor emprestada ao avô e caminhou para o café Planalto. 

sentou-se no canto. pediu uma torrada. deixou a parte do meio para o avô

(o Julio esperou sempre que ele voltasse.)

olhou para a televisão anã. chamou a empregada com olhos de amor. apresentou-se. Julio. olhou com ternura lasciva para as pernas da empregada. levantou-se ainda sem tamanho. e destemido 

- o meu avô morreu.

a empregada com olhos de amor sorriu. segurou as mãos do Julio. encostou os lábios ao ouvido do Julio

- o teu avô tinha olhos de amor.

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