O crescimento



foi o meu pai que me ensinou a escrever. na sua criatividade encontrou a melhor forma de se despedir de mim. escreveu uma carta quando eu a nascer. escreveu o meu nome no envelope, a letra grossa, com letras definidas. deixou o envelope sel
ado a cuspo, no meio das fraldas de pano e alfinetes. despediu-se e nunca mais voltou. 

aprendi a ler aos dois anos. quando os meus primos ainda tentavam colocar um cubo no espaço da esfera. quando os meus primos ainda eram daltónicos. eu aprendia a ler aos dois anos. tinha pressa das palavras. e aprendi a ler sozinho. primeiro para dentro. depois para fora, com o dedo a apontar as letras. a boca pequena a criar sílabas. a chamar as coisas pelos nomes. a pedir as refeições por escrito. a escrever chorar em vez de berros. 
e os adultos espantados. 

- o miúdo é genial. 

- a criança não é normal.

- o menino é sobredotado.

a minha mãe a passar as roupas a ferro a ouvir-me ler as legendas dos filmes de Ingmar Bergman. a explicar os silêncios. sentado no chão, como as crianças, a cabeça a pesar na tentativa de equilíbrio. mas a ler as letras difíceis do argumento. a soletrar Ingmar letra a letra, vagarosamente para que a minha mãe percebesse que somos intelectuais desde que os olhos conseguem chorar. estar enternecido é ser intelectualmente crescido. 

na escola todos a pedirem o colo e os peitos fartos das auxiliares, das educadoras. a deixarem-me no canto da sala de leitura, isolado, de meia fralda, quase nu, com Wittgenstein a ensurdecer-me a capacidade filosófica de julgar. a fralda com apontamentos e duvidas da existencia. 

aos dez anos já lera tudo o que podia ter deixado para ler aos oitenta. dois anos depois, aos doze, dava entrada na universidade de letras para concluir o doutoramento sobre o retrocesso do envelhecimento na escrita de Miguel Urbano Rodrigues.

era demasiado culto para conversar com os outros. trocava as tardes pelas noites para o sossego. falava muito pouco. gostava de ouvir aqueles que calados tinham tanto para explicar. observava as pessoas no senso comum dos dias. roubava os jeitos dos que não descansavam. estava acima dos eruditos em literatura ou história. 

casei sozinho. uma festa em que apenas eu bebi. assinei os papéis a duas mãos. inventei apelidos. 

trabalhava no escritório que servia de quarto, cozinha e sala. pausas apenas para dormir e comer. o trabalho pago pelas revistas e pelos jornais. uma vida infinitamente ligada à música clássica e aos poetas que ainda não haviam nascido.

eu inventei poetas. 

baptizei os meus dois filhos com o mesmo nome. filhos-livros. dois nomes-titulos. dois filhos que dormiam na minha mesa de cabeceira. um ao lado do outro. a ganharem poeira no tempo. dois filhos a envelhecerem juntos. dois irmãos gémeos e de conceitos diferentes. interiores distintos. individuais no termo e na forma.

os funerais foram acontecimentos que perdi. 

acabei por envelhecer eu próprio. perdi a vontade de inventar quando os cabelos brancos e as doenças. coisas mesmas que me foram corroendo por dentro. primeiro a beleza que sempre estranhei, a coser-se na trajectória da imortalidade que finda.

no fim de contas, nunca abri o envelope que guardava sempre no bolso das calças. nunca tive coragem para o amor.

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