Teremos sempre o melhor de nós




os livros são a mobília mais necessária. preenchem espaços que nenhum móvel tem coragem de proteger. essa fascinação existiu na fábrica do braço de prata. tinha tudo. livros escolhidos no rigor. quadros com rostos da história. o próprio chã
o, com marcas culturais.

na entrada, uma menina vestida de trapos, a sorrir para os papéis. um corredor inteiro de literatura do mais puro calibre. as áreas vastíssimas do conhecimento: Noam Chomsky, Hanna Arendt, Aristóteles, Ruy Belo.

na sala a fugir da entrada, um espaço colossal de silencio. na espera de um músico, de um projecto: Valter Lobo.

a voz de Valter Lobo: "eu não tenho quem me abrace neste inverno"

e numa cadeira plastificada, na sobra de uma cerveja por beber, eu. com vontade de embriaguez repentina. a perceber, entre os instrumentos que se tocavam, que a língua portuguesa terá sempre caminhos por visitar.

a voz de Valter Lobo: "eu não tenho quem me abrace neste inverno"

o peso da noite julgava-se no vidro embaciado da sala. chuva violenta e a certeza do inverno. a teimosia da estação que tem sempre o fado do melancolia, da tristeza terna.

a voz de Valter Lobo: "eu não tenho quem me abrace neste inverno"

os abraços que o inverno nunca me deu porque estou tão metido dentro da literatura e dos livros, que me esqueço que lá fora, mesmo na chuva incessante, mesmo no frio que pode matar, mesmo aí, existem as coisas mais bonitas, mais cândidas.
as palavras a entrarem solenemente na disponibilidade da tristeza. a voz e todos os sons, a descodificarem o arrepiante momento em que me tenho a certeza que estou só, demasiadamente só.

a voz de Valter Lobo: "teremos sempre o melhor de nós"

e as horas recuadas. o meu abandono da sala turva, já turva. uma outra sala que rezava baixinho. como se me chamasse num tom que só eu podia ouvir. as minhas pernas a terem ligações telepáticas com o destino. a correrem para uma estante de várias cores. photomaton & vox, Herberto Helder. sempre ele, sempre o sotaque envergonhado. as leituras conscientes de quem não se quer eterno senão nas palavras. herberto helder.

voz de Valter Lobo: "eu pensei que fosse fácil, mas tens que me ajudar"

lá fora o céu ainda quebrado pela violência do inverno. dentro da sala, tu a fazeres uma falta insuportável. o acontecer de uma noite tremendamente bonita, tudo pleno de fábulas, mas tu a faltares porque a distância.

mas estavas lá.

na voz que cantava, quase a sussurrar nas pausas, estavas lá. nos gestos do músico de acompanhamento, estavas lá. nos quadros pincelados dos rostos de Trotsky e Nietszche, estavas lá. no livro da entrada, com a barba poética de Ruy Belo, estavas lá. na tribo de desconhecidos, estrangeiros perdidos em cálices de vinho, estavas lá.

estiveste sempre perto de mim, porque o amor caberá sempre no espaço vazio que existe entre as linhas daquilo que acontece e do que não acontece.

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