Morrer no amanhã



vim hoje do consultório do doutor Montoya. lá estava ele, cheio de cheiros agradáveis e conversa pedagógica sobre como aprender a morrer. sempre o achei estúpido. um sem sentimentos, a fazer-se passar pela cultura do espirito positivo, a cultura da morte santa. um médico igual aos outros. menos bonito, com os dentes estragados mas de relógio a preço de casaco de peles. o pulso quase brilhante, a esconder o corte profundo que um dia fez na ânsia de morrer jovem.

(os jovens tornam-se eternos quando a morte cedo.)

ao sentar-me à frente do doutor Montoya, os olhos falaram primeiro que a voz

- vais morrer amanhã.

e todos os gestos nervosos que existem não cabiam nas minhas mãos. quando a voz repetiu o que os olhos já me tinham confirmado, eu já estava demasiado comovido com a vida. nem uma pergunta me surgia. nada. o médico Montoya sentado no seu cadeirão, a remexer irritantemente na sua caneta de assinar papéis. com um jeito imperial de dizer a verdade

- vais morrer amanhã.

não me tornei agressivo. estava demasiado comovido com a vida. disse um adeus convencido de que fosse definitivo. o adeus é sempre definitivo quando o regresso é indesejado.

apeteceu-me ligar para muitas pessoas. o normal quando sabemos que vamos morrer. falar com todos e explicar em poucas palavras

- vou morrer amanhã.

queria ligar para as pessoas todas que a lista me mostrava. todos deveriam ter algo importante para me dizer. nesta hora procuramos sempre palavras bonitas que nos tornem bonitos e que nos despeçam ainda mais bonitos.

não consegui escolher um único nome da lista. todos me pareceram parcos em ideias comparadas com a minha comoção interior. nenhuma pessoa que soubesse conduzir poesia. e eu tinha pressa. eu ia morrer amanhã. e o tempo a passar, a querer segurar os braços do amanhã. o tempo a querer fazer de mim o desaparecimento. a morte como não a conhecemos, a querer levar as minhas palavras. a morte que com ela e somente com ela, o tempo deixa de acontecer.

(a morte não tem tempo.)

corri o mais que pude. as pernas focadas naquele lugar que me sossegava. se é que algum lugar poderá sossegar a morte. sabia que a relva aprovaria o meu corpo naquele banco de jardim.

sentei-me. retirei o pedaço de papel que trazia no bolso. procurei em todas as direcções a frase que poderia deixar-me perdido no tempo. aquela frase que procuramos a vida inteira, mesmo sabendo que nunca será.
deixei o papel quase em branco. nenhuma frase. uma única palavra: tempo. essa palavra que a filosofia não conseguiu explicar. a palavra que define todo o pensamento, toda uma condição, todo um limite para o que é isto de existir.

a madrugada começou a cantar baixo

- vais morrer amanhã.

poucas horas para que tudo fosse o lado negativo. o corpo a ceder à solidão.
liguei por fim ao teu nome. perdido entre outros tantos nomes, o teu, guardado na memória das palavras. a razão da minha escrita ter tanto passado. o nome que perdi camas incertas. a voz que os anos deixaram escorregar.

- vou morrer amanhã, vou amar-te amanhã.

ouvi que choravas. senti que choravas. disseste poucas coisas. não demoraste a reconhecer o meu rosto pela voz. como se nunca tivesse havido distâncias sem perdão entre nós. eu estava cada vez mais comovido com a vida. tu a fazeres-me tanta falta.

- vou morrer amanhã, vou amar-te amanhã.

despedi-me sem dizer adeus.

quando chegou a manhã, eu já queria ter morrido.
morri pouco tempo depois, a olhar para o momento em que te conheci.

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