O teatro surdo




voltei ao teatro amanhã. assim mesmo como escrevo, com o verbo mal conjugado. como se a filha que ainda não tenho pudesse dizer na sua livre vontade: voltei ao teatro amanhã. assim mesmo, porque ainda estou no teatro e talvez vá ficando. talvez me deixe ficar a arrastar o tempo.

os dois senhores estão sentados alii à frente. fazem perguntas. é um teatro diferente. há muitas perguntas e as respostas vão ficando nos gestos que a plateia insiste. uma fininha vergonha de querer responder sem se comprometer. 

e os dois senhores. pouco equilibrados nas questões que não duvido filosóficas, existenciais. e a plateia a gesticular com as cabeças. a identificarem-se os que pouco pensam. a esconderem os que vivem sem pensar. a marcarem os que duvidam que alguém pense sequer.

eu juro que estou atento. vou bocejando porque o café não tinha cheiro. mas não tenho vontade de sono. cruzo as pernas para disfarçar que estou interessado. demasiado interessado.

os senhores olham para mim algumas vezes. têm o descaramento dos recém nascidos. 

- porque não mudas o corte de cabelo?

a plateia na tendencia de rir sem definição. uma harmónica de risos. não fazendo a mais pequena ideia que estou careca porque as desilusões envelhecem com pressa. 

voltei ao teatro amanhã. sem saber o que é isto do teatro. estão dois senhores com perguntas em papeis. o teatro sempre escondeu as folhas nos bastidores, nos ensaios. estes dois senhores de barba e cabelo comprido olham para os papéis e depois fixam os olhos da plateia

detesto que olhem para os meus olhos.

enveredo as mãos pelo vinho que tenho ao meu lado. escondo que a cada pergunta me invadem a privacidade. 

- se tivesses a casa em chamas, o que procurarias salvar?

e eu a deixar-me morrer queimado com um cobertor de livros. a minha biblioteca de Lobo Antunes e Tolstoi a servir-me de extintor. os escritores no meio do incêndio a ecoarem a salvação. livros queimados a doerem-me tanto quanto pessoas.

e os senhores a continuarem a sua peça. cheios de dúvidas. a encherem a sala com palavras. a relembrarem que o teatro é grego na história, mas agora, que são eles com papeis não decorados, é tão português que faz reflexo de tão bonito.

as hora passam-se no meio de perguntas quase absurdas de tão concretas. e os dois senhores sentados como se nada fosse. a desafiarem que se chore. a servirem o método socrático como uma brincadeira de amigos de café.

seguro o vinho novamente na despedida. um trago de vinho e o teatro termina como começou: uma pergunta.

- quando é que uma imagem vale mais do que mil palavras?

e eu não sei se foi do vinho. não sei se foi a voz do Walt Whitman na estante perto, a dizer-me para perceber. a única certeza que tenho é que te vi com um chapéu de chuva numa noite limpa. a saltar o lancil do passeio, a molhares a bainha das calças, a olhares de soslaio para a cacimba que teimava, a rodopiares o cabo do chapéu de chuva, a morderes os lábios porque o cieiro, a sentires a comichão do cabeço e arrepios, a perguntares se os cegos sonham fotografias. 

- quando é que uma imagem vale mais do que mil palavras?

- quando és tu.

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